"Muitas coisas na minha vida se afiguram para mim como se eu andasse numa corda bamba, a maior parte do tempo sem perceber que à minha esquerda e à minha direita um abismo se escancarava."
É assim que o alemão Werner Herzog se descreve em "Cada Um por Si e Deus Contra Todos", seu livro de memórias.
Não são poucas as passagens em que o diretor de obras como "O Enigma de Kaspar Hauser" e "O Homem Urso" parece tentar, por meio da palavra, compreender a si e dar concretude a lugares, pessoas e experiências que o constituem e que, por consequência, habitam seus filmes.
Artista prolífico, que fez os primeiros curtas aos 21 anos e segue em atividade aos 82, o diretor revela também um pleno domínio desta forma literária: quando se dedica à genealogia familiar ou à descrição de gente que cruzou seu caminho, faz lembrar Pedro Nava, o grande memorialista brasileiro.
Acontece que a vida de Herzog é a de um cineasta andarilho, que rodou o mundo, às vezes a pé, em busca de locações perfeitas, personagens improváveis e atores ideais. Por isso, "Cada Um por Si e Deus Contra Todos" é também sobre a produção de imagens. Mas, diferentemente de muitos livros de cineastas, seu fio condutor é a vida —com seus encontros, mistérios e tragédias.
A narrativa começa com a descrição de uma construção de pedra no cemitério de uma aldeia em Creta. Herzog, então 16 anos, se impressiona não só com o morto, com dois tufos de algodão no nariz, mas com o mar ao redor, "liso como um espelho". Foi também ali que esbarrou nos moinhos de vento que dariam origem ao roteiro de seu primeiro longa-metragem, "Sinais de Vida".
Herzog nasceu em 1942 e tinha duas semanas de vida quando começaram os bombardeiros da Segunda Guerra em Munique, sua cidade natal. Seu pai estava na França, como soldado, e sua mãe, assustada, se mudou para as montanhas, na Baviera. Na infância, o garoto e seu irmão ordenharam vacas; pescaram trutas com as mãos; andaram descalços por trilhas pedregosas e dormiram sobre o feno.
Aos 13 anos, de volta a Munique, ele se recorda de haver brincado em espaços devastados pelos bombardeios, de ter descoberto a paixão pelo futebol e de ter mascado, por semanas, o chiclete recebido de um soldado da ocupação americana. "O que vimos quando crianças tenho ainda hoje diante dos meus olhos", escreve.
É também em Munique, nesse momento, que ele conhece Klaus Kinski, ator em muitos de seus trabalhos e tema do documentário "Meu Melhor Inimigo" (1999): ambos moravam na mesma pensão com banheiro coletivo.
Outra coincidência habitacional se dá com Glauber Rocha, com quem dividiu um apartamento nos Estados Unidos —o Brasil, por sinal, é citado algumas vezes. A passagem em que narra a atabalhoada ida de Glauber para o aeroporto é uma daquelas em que faz o leitor rir.
A graça é, inclusive, um dos elementos que tornam suas memórias tão encantadoras. As histórias mirabolantes não são poucas, até por ser Herzog um aventureiro fascinado por missões espaciais, cavernas e florestas.
A pré-produção e as filmagens de "Aguirre, a Cólera dos Deuses" (1972), "Fitzcarraldo" (1982) e "A caverna dos Sonhos Esquecidos" (2010) estão entre as mais espantosas.
Mas ele não se dá ares de herói ou gênio criativo. Diz, ao contrário, não saber exatamente a que atribuir os raros momentos em que alcançou "uma misteriosa e insondável beleza e verdade".
Herzog cita de modo afetuoso as mães dos seus filhos e, entre as revelações a respeito de si, afirma nunca ter usado drogas e desconfiar da psicanálise e de quem abraça árvores. Conta ainda que o livro que levaria para uma ilha deserta seria o Oxford English Dictionary.
Seu tom passa, porém, longe do confessional: "O que fiz em filmes, o que publiquei em livros são portas suficientes, brechas na minha fortaleza, que já com isso se abre escancarada e indefesa."
Não é preciso conhecer seu cinema para se conectar ao humanismo antevisto pelas brechas de suas memórias. Difícil será, depois de lê-las, não querer ver seus filmes.
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