Após montar seis peças do irlandês Bernard Shaw, o Círculo de Atores está em cartaz no auditório do Masp, em São Paulo, com um clássico do noruguês Henrik Ibsen, "Hedda Gabler", o drama da filha única de um militar, insatisfeita com o casamento e inquieta com a vida medíocre que vislumbra para o futuro.
Ibsen era um dos autores que Shaw mais admirava e essa é uma das conexões entre os trabalhos anteriores e o atual do grupo teatral. O projeto dá sequência às montagens de "A Profissão da Sra. Warren", de 2018, e "O Dilema do Médico", de 2023, de Shaw, e foi idealizado pela pesquisadora e produtora Rosalie Rahal Haddad.
Em comum, as três peças têm figuras femininas marcantes, questionamentos e provocações sociais, revelações que perturbam a aparente tranquilidade burguesa e dilemas de vida e morte.
Ibsen escreveu a história da enigmática e narcisista Hedda Gabler em 1890, quando não era comum a investigação teatral sobre a psicologia do comportamento feminino.
Herdeira de um piano, um quadro, duas pistolas e da arrogância do pai, ela é convencional demais para desfazer o casamento, como Nora, de "Casa de Bonecas", analisa a diretora Clara Carvalho. "Mas também é inquieta: rejeita a gravidez e não suporta a vida conjugal com um homem que considera medíocre."
Clara, atriz consagrada do Grupo Tapa, lembra que Ibsen é o fundador do drama realista moderno e fez do teatro um fórum de debates de assuntos como a condição da mulher na sociedade, a corrupção, reformas políticas e a eutanásia.
Discussões como essas fazem de "Hedda Gabler" uma peça ainda atual, ao levar para o palco o drama de uma mulher que tenta, sem sucesso, manipular o jogo patriarcal.
Interpretada por Karen Coelho, Hedda é atraente e perturbadora, sonhadora e trágica, egocêntrica e frágil. Transparece melancolia a imagem inicial dela na casa vazia e escura, com móveis cobertos por lençóis brancos.
Cercado por um jardim e por cadeiras em que os atores ficam em cena o tempo todo, revelando o bastidor teatral, o cenário é composto pela fachada e sala de uma mansão que já foi almejada pela protagonista, em mais um engano de sua existência.
Um dos pontos altos do espetáculo é a trilha sonora executada ao vivo por Gregory Slivar e o canto enigmático da atriz Nábia Vilela. Estão no palco instrumentos como piano, teclado e violoncelo.
Clara Carvalho, vencedora do Grande Prêmio da Crítica da APCA, a Associação Paulista de Críticos de Arte, em 2023, é também a tradutora do texto de Ibsen.
É a primeira vez que dirige uma peça do norueguês, mas ela já interpretou personagens do autor em "Espectros", em 2011, com direção de Francisco Medeiros, e "Um Inimigo do Povo", de 2022, dirigida por José Fernando Peixoto de Azevedo.
"Ele expandiu os limites da peça bem-feita, da tradição francesa. Rompeu com clichês do melodrama e das tramas de simples entretenimento", afirma. "Ele se dizia mais um arquiteto do que um dramaturgo, porque suas peças apresentavam e explodiam a casa burguesa da segunda metade do século 19."
A diretora enxerga em Hedda uma mistura de Iago, de "Otelo", e de Cleópatra —maldade e manipulação, beleza e espetáculo. Entre desejos e frustrações, é uma personagem que não se encaixa e surpreende o público.
"A Noruega provinciana foi um dos primeiros países a adotar o sufrágio feminino, em 1913, e se tornou um local pioneiro em conquistas sociais. Ibsen estava dialogando com todo esse universo", completa a diretora.
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