Maria entra no apartamento da tia que acabou de morrer e se depara com pilhas intermináveis de papéis.
Ali, decide que é o momento de voltar a escrever uma história, tarefa da qual diz se esquivar há mais de 30 anos, quando, criança, já dedicava atenção a pequenos objetos da vida cotidiana (uma xícara, um adesivo) e sentia um impulso por compilá-los e, claro, narrar seus significados.
Nascida no começo do século 20 na Rússia, a criança Maria parecia adivinhar que seu tempo era tempo de narrar principalmente os fracassos da humanidade. A autora, porém, não via justiça no desinteresse humano pela banalidade de sua história familiar.
É aí que ela constrói a matrioska mnemônica que forma "Em Memória da Memória" de maneira muito honesta e expondo suas perguntas sobre a ética dessa tarefa.
A autora constrói seu romance apoiada nas mulheres que contam histórias —assim com "h" minúsculo. Sua bisavó, sua avó, sua mãe e, finalmente, ela própria.
A lendária bisavó de Maria havia sido presa ainda na época dos czares, se formado em medicina, morado em Paris e cuidado de crianças soviéticas, eventos impensáveis para quem viveu na fechada Rússia pós-revolução, tornada União Soviética —ou seja, para seus avós e seus pais.
O interessante é que se trata de uma memória construída com restos de enunciados, como os pequenos objetos que sonhava decifrar na infância, o que desloca um pouco a tarefa da memória como justiça àqueles que sofreram ou foram exterminados em grandes tragédias.
Aqui, há pequenas tragédias, uma grande ruptura com a Revolução Russa, alguma beleza, muitos enganos, comedimento material e poucas alegrias.
"Em geral, os parentes de todos tinham sido figurantes da História – e os meus, inquilinos, se tanto", escreve. "Ninguém jamais combatera, fora vítima de repressão [...], não caíra nas mãos dos alemães, não se vira em nenhuma das grandes carnificinas do século."
Num trajeto tortuoso, cheio de derivas e engasgos intencionais, o romance longo brilha ao não se deixar perturbar pela busca de um sentido final, mas se sente à vontade nos espectros da realidade e nas fronteiras do gênero narrativo —que comporta ensaios, uma encantadora epistolografia transcrita e descrições exaustivas de objetos— lembrando os tempos áureos do romance como gênero (pelo avesso, é verdade).
Para evitar spoilers, dá para dizer que, nesta história, a ideia de memória como algo consistente e sólido desmorona diante de fragmentos e de equívocos.
Imagine se encontrar com algo de um grande valor familiar, algo muitas vezes imaginado, sentir o estômago esfriar e as luzes cintilarem diante da materialidade histórica do encontro, mas descobrir mais tarde que aquilo era falso, que houve um engano e que o objeto não era nada daquilo? Mas enganos também fazem memória, afinal a possibilidade de enunciar é o que a constrói.
Esse é o tipo de questionamento que refresca a questão da memória na literatura de Stepánova, que desloca o lugar do arquivo e seus trânsitos entre o público e o privado, entre a arqueologia e a psicanálise.
O título, inspirado na expressão latina in memoriam, pode também ser compreendido como uma despedida da ideia de memória como a conhecemos, ou como as boas-vindas ao trabalho de esquecimento, presente em toda mínima recordação.
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