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Literatura indígena vê nova geração despontar e tenta superar fronteiras de gênero

Consolidados entre crianças e jovens, escritores miram publicações para adultos e aumento do protagonismo feminino

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ilustração de duas pessoas indígenas montadas em cima de jacarés contra o espaço sideral se aproximando de representação do planeta terra em pedaços

Ilustração do livro 'O Caminho para a Casa de Barro', de Xadalu Tupã Jekupé Xadalu Tupã Jekupé/Divulgaçã

Coimbra (Portugal)

"Índio quer mercado." Foram essas as três primeiras palavras de uma reportagem publicada neste jornal há quase 30 anos, em abril de 1995. No texto, eram apresentados os primeiros passos de uma literatura escrita por autores indígenas, entre eles Daniel Munduruku e Kaká Werá.

Décadas depois, quase tudo mudou. Já faz tempo que chamamos essas populações de indígenas. Tornou-se inimaginável usar uma caricatura linguística digna de filme dublado de faroeste na hora de se referir a esses povos, como se fossem incapazes de dominar perfeitamente o português. E há anos guaranis, macuxis, mundurukus, yanomamis e outras etnias já são realidade no mercado editorial.

Mas existe algo a mais. Agora, uma nova geração de escritores e ilustradores começa a despontar e a lidar com outros desafios dentro da literatura indígena brasileira —como, por exemplo, encontrar maneiras de aumentar o protagonismo de autoras mulheres, ainda baixo, e ampliar as fronteiras para além do infantojuvenil, levando às livrarias também romances, contos, poesias, crônicas e ensaios.

"Eu faço uma curadoria para o Instituto Oceanos e já contabilizamos 156 autores indígenas no Brasil hoje", afirma Kaká Werá, um dos pioneiros. "É uma diversidade grande, que segue forte, mesmo depois de um governo que nos atacou de maneira nunca vista na história, talvez só no período colonial", diz o escritor, descendente de tapuias e acolhido pelos guaranis, em referência ao mandato de Jair Bolsonaro.

Embora livros pontuais até tenham sido publicados em décadas anteriores, a linha do tempo da literatura indígena no Brasil aponta o início dos anos 1990 como momento de formação. São dessa época obras como "O Índio Aviador", de Marcos Terena e Atenéia Feijó, e "Histórias de Índio", de Munduruku.

O período coincide com o fortalecimento do movimento e do ativismo identitários, muito incentivados pela Constituição de 1988, na qual há um capítulo dedicado a essas populações. Desde então, ficou quase impossível separar a literatura da luta por direitos.

Logo em seguida, vieram uma parceria com a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, além de incentivos do governo federal, que criou editais para compras de obras com temáticas indígenas para escolas e bibliotecas e implementou a lei 11.645/08, que incluiu o ensino de culturas originárias e afro-brasileiras nas salas de aula.

Somadas, essas iniciativas ajudaram a direcionar definitivamente as publicações desses povos para um leitor específico —as crianças e os adolescentes.

Para se ter uma ideia, um levantamento feito por Carolina Bueno Nogueira no Instituto Vera Cruz mostrou que, de 1996 a 2021, 163 títulos infantojuvenis de escritores indígenas de 21 etnias foram impressos no Brasil. Além dos já citados, há figuras como Olivio Jekupe, Eliane Potiguara, Yaguarê Yamã e Graça Graúna, por exemplo.

"Eu nunca tinha pensado em publicar para esse público", conta Xadalu Tupã Jekupé. O artista plástico tem obras em instituições como o Museu de Arte Moderna de São Paulo e acaba de lançar seus dois primeiros livros, ambos infantojuvenis. "Lá na aldeia, o cacique fala que acredita muito nas crianças de hoje, porque elas têm a oportunidade de fazer tudo diferente no futuro."

Pela editora Piu, o autor guarani publicou "Cadê Cadê", com texto de Paula Taitelbaum. E, quase ao mesmo tempo, chegou às livrarias "O Caminho para a Casa de Barro", feito em parceria com Rita Carelli e editado pela Baião, selo infantojuvenil da Todavia. De formas diferentes, ambos escancaram os efeitos catastróficos dos ataques do homem branco contra as sociedades indígenas e a natureza.

Tudo é tão atual que chega a ser tentador enxergar neles um clarão premonitório. Nascido em Alegrete e morador de Porto Alegre, o ilustrador viu sua casa e seu ateliê serem alagados pelas enchentes que arrasaram o Rio Grande do Sul. Provisoriamente no Rio de Janeiro, onde participa de uma residência artística no Museu Nacional de Belas Artes, ele terá uma exposição individual aberta na instituição em 2025.

"A culpa das enchentes não é da água, né? O culpado é quem permitiu essa situação, o prefeito, o governador. A avó disse uma coisa muito sábia. Na natureza, quando um faz, depois todo mundo paga."

Os livros de Xadalu encontram eco em boa parte da literatura indígena, não só pelos temas, mas também pela maneira como foram realizados. A colaboração entre autores indígenas e não indígenas costuma ser comum, com dois nomes mais frequentes —o de Carelli e o do ilustrador Mauricio Negro.

A escritora trabalha também com Ailton Krenak, colunista deste jornal e primeiro indígena a entrar na Academia Brasileira de Letras. Neste mês, ambos irão lançar o infantojuvenil "Kuján e os Meninos Sabidos" pela Companhia das Letrinhas. Na história, estreia de Krenak na escrita para crianças, o Deus criador volta à Terra na forma de um tamanduá e é caçado por humanos.

Ao chegar até aqui, talvez o leitor já tenha percebido a diferença na quantidade de homens e mulheres indígenas citados neste texto.

"Isso é uma questão que aparece no mercado editorial como um todo. As pessoas sempre perguntam quantas mulheres você já leu. Mas quantas delas são indígenas?", pergunta Trudruá Dorrico, que é macuxi e organizadora do projeto Leia Mulheres Indígenas.

Ao lado de Mauricio Negro, ela coordenou para a Companhia das Letrinhas a antologia "Originárias", com autoras como Auritha Tabajara, Glicéria Tupinambá, Vanessa Kaingang, entre outras. "Ser indígena no Brasil não é fácil. Ser mulher indígena menos ainda, porque existe um histórico de violência e de falta de oportunidades", diz Dorrico.

Mas a pesquisadora diz ser otimista e vê o cenário ficando mais equilibrado. No ano passado, por exemplo, o livro "Guerreiras da Ancestralidade" ganhou o prêmio Jabuti. Gratuito e organizado pelo Mulherio das Letras Indígenas, com Eva Potiguara e Vanessa Ratton à frente, o volume reúne gêneros que vão da poesia à crônica, sem ficarem restritos à temática infantojuvenil.

"Essa é a próxima fronteira a ser superada. Na publicação para adultos, ainda predominam pessoas que falam por nós, sobre nós, através de nós", afirma Werá. Recentemente, ele organizou a antologia juvenil "Apytama" para a editora Moderna, com mais oito escritores. Agora, prepara um livro de não ficção para adultos que sairá pela BestSeller, selo da Record, ainda este ano.

"A discussão não é publicar para adultos ou crianças, mas para adultos e crianças. Porque a produção indígena já é muito diversa hoje, com infantojuvenis, romances, poesias", conta Dorrico. "O desafio é levar essa diversidade até o leitor."

Biblioteca Ancestral

Conheça 20 livros infantojuvenis recentes publicados por escritores e ilustradores indígenas

Apytama - Floresta de Histórias
Vários autores. Organização: Kaká Werá. Ilustrador: Digo Cardoso. Ed.: Moderna. R$ 76 (80 págs.)

De Bubuia com Vovó Anica
Autora: Lucia Tucuju. Ilustradora: Luciana Grether. Ed.: Rebuliço. R$ 45 (32 págs.)

Cada Remada, uma História
Autores: Cristino Wapichana, Daniel Munduruku, Tiago Hakiy e Roni Wasiry. Ilustrador: Mauricio Negro. Ed.: Melhoramentos. R$ 57,90 (116 págs.)

Cadê Cadê
Autores: Xadalu Tupã Jekupé e Paula Taitelbaum. Tradutora: Ara Poty. Ed.: Piu. R$ 59 (32 págs.)

O Caminho para a Casa de Barro
Autores: Xadalu Tupã Jekupé e Rita Carelli. Ed.: Baião. R$ 64,90 (48 págs.)

Chapeuzinho Verde
Autora: Maria Lucia Takua Peres. Ilustrador: Yacunã Tuxá. Ed.: Leiturinha. R$ 49,90 (48 págs.)

Mandí Reko - O Conto de Mandí
Autora: Luã Apyká. Ilustradora: Anna Bheatriz Nunes. Ed.: Gaivota. R$ 59,50 (56 págs.)

Conversa de Fim de Tarde
Autor: Olivio Jekupe. Ilustrador: Rodrigo Mafra. Ed.: Ciranda na Escola. R$ 39,90 (32 págs.)

Fogo, Gente!
Autor: Cristino Wapichana. Ilustradora: Graça Lima. Ed.: Leiturinha. R$ 49,90 (48 págs.)

Hary e Karimã - Os Bons Velhinhos da Floresta
Autor: Yaguarê Yamã. Ilustradora: Wanessa Ribeiro. Ed.: Editora do Brasil. R$ 51,90 (40 págs.)

Os Indígenas, a Mãe Terra e o Bem Viver
Autor: Ademario Ribeiro Payayá. Ilustrador: Mauricio Negro. Ed.: Moderna. R$ 70 (64 págs.)

Kujan e os Meninos Sabidos
Autores: Ailton Krenak e Rita Carelli. Ed.: Companhia das Letrinhas. R$ 54,90 (40 págs.). Lançamento: 18 de junho

Kunumã
Autor: Ikanê Adean. Ilustradora: Bruna Lubambo. Ed.: Globinho. R$ 80 (32 págs.)

Mari Hi - A Árvore dos Sonhos
Autora: Hanna Limulja. Ilustrador: Gustavo Caboco. Ed.: Ubu. R$ 69,90 (48 págs.)

Meu Vô Apolinário - Um Mergulho no Rio da (Minha) Memória
Autor: Daniel Munduruku. Ilustrador: Odilon Moraes. Ed.: Edelbra. R$ 79 (48 págs.)

Nhandewa Onimangá - Brincadeiras Indígenas
Autor: Tiago Nhandewa. Ilustrador: Jonas Estevam Malakuiawá. Ed.: Cintra. R$ 53,90 (60 págs.)

Originárias - Uma Antologia Feminina de Literatura Indígena
Várias autoras. Organização: Trudruá Dorrico e Mauricio Negro. Ed.: Companhia das Letrinhas. R$ 59,90 (144 págs.)

Sawé - O Grito Ancestral
Autor: Daniel Munduruku. Ilustrador: Mauricio Negro. Tradutor: Honésio Munduruku. Ed.: Uk’A Editorial. R$ 89 (24 págs.); ebook gratuito em arca.fiocruz.br/handle/icict/60925

Teko Hypy, a Origem do Mundo - Uma Narrativa Mbyá-Guarani
Autores: Ariel Poty, Leandro Mimbi, Patrícia Yxapy e Sophia Pinheiro. Ed.: Negalilu. R$ 60 (44 págs.)

Uga - A Fantástica História de uma Amizade Daquelas
Autor: Kaká Werá. Ilustradora: Taisa Borges. Ed.: Peirópolis. R$ 64 (64 págs.)

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