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'Grande Sertão' exalta roupagem barroca e espírito etnográfico

O filme, que está em cartaz nos cinemas, quer dar conta das questões do Brasil com um olho na ficção e outro no real

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Piero Sbragia

Grande Sertão

  • Quando Estreia na quinta-feira (6) nos cinemas
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Caio Blat, Luisa Arraes, Rodrigo Lombardi
  • Produção Brasil, 2024
  • Direção Guel Arraes

A terra seca rachada envolta por um grande muro de concreto, revelada no primeiro plano de "Grande Sertão", é um alerta: a degradação que o filme vai mostrar não é apenas do solo, é da alma humana.

Dirigida por Guel Arraes e com roteiro assinado em parceria com Jorge Furtado, a obra analisa a desertificação das relações interpessoais. "Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde o homem tem que ter a dura nuca e a mão quadrada. É onde manda quem é forte com as astúcias". O respeito à prosódia de Guimarães Rosa é evidente e o texto literário não é mero adorno estético, é discurso político. Mais forte do que o poder do lugar é o "pensamento da gente".

Cena do filme 'Grande Sertão', dirigido por Guel Arraes - Divulgação

E qual é esse pensamento? Ou melhor, quais são esses pensamentos? No plural, como o elenco afinadíssimo. Do paulistano Caio Blat à carioca com coração pernambucano Luisa Arraes. Do baiano Luis Miranda à brasiliense Mariana Nunes. Pluralidade de sotaques e talentos. O sertão do filme, assim como no livro, é de amor e ódio. Não como uma situação polarizada, mas essencialmente dialética. O que sai desse caldo? Quais outros sentimentos brotam?

Hermógenes, personagem de Eduardo Sterblitch, é o caramulhão, o tinhoso, o enjeitado, o bode sem chifre, mas com verrugas. É o rancor travestido de ódio. Fundamental para entendermos esse Brasil em 2024, com pessoas que ainda fazem escolhas essenciais na vida, inclusive votar, a partir de ressentimentos e frustrações. Hermógenes age a partir do rancor que nutre por Joca Ramiro, interpretado por Rodrigo Lombardi. Apesar de estarem do mesmo lado da guerra civil retratada no filme, o ressentimento os afasta.

Joca, por sua vez, é o líder dos revoltosos contra o sistema. Diferentemente do verruguento antagonista, é o afeto que opera dentro dele. Afeto por Diadorim, vivido com intensidade física por Luisa Arraes. Ela está irreconhecível, um distanciamento absurdo de Blandina, personagem dela na novela "No Rancho Fundo".

Uma das grandes sacadas desse "Grande Sertão" urbano e próximo do real é o fato do roteiro não explorar romanticamente a relação entre Diadorim e Riobaldo. Claro que eles se amam, e claro que isso os incomoda. Como dois homens podem se amar? Eles se incomodam só de pensar que um beijo pode acontecer. A tensão sexual entre ambos importa mais do que o romance platônico idealizado. Tanto que quando Luellem de Castro entra em cena, arrebatadora como Nhorinhá, entendemos a chave dialética da obra. Não há rancor desse lado da história! O que existe é afeto, é escuta, é prazer.

Nhorinhá age como catalizadora dos sentimentos de Riobaldo e Diadorim. Eu luto pra quê? Eu vivo pra quê? Uma obra que nos faz refletir sobre nosso papel no mundo, na vida em sociedade. O que vi no cinema me fez pensar sobre qual tipo de pai quero ser para Enrico, meu filho. Um pai que não se esconde covardemente na virtualidade das redes anti-sociais, mas se apresenta diante da complexidade do mundo real. Assim como o professor Riobaldo decide, no filme, abandonar a sala de aula para lutar em outra trincheira.

O filme rasga e remenda os gêneros cinematográficos. "Grande Sertão" é para ver quieto na sala escura do cinema, "sem preparos de avisar", como diria Guimarães Rosa. "O senhor sabe o que é silêncio é? É a gente mesmo, demais". Pois bem, por que há de vivermos no meio desse barulho todo? "A gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente". Esse não deveria ser nosso propósito em vida? Ou como canta Emicida: "Mano, rancor é igual um tumor, envenena a raiz".

Quando Riobaldo quebra a quarta parede, na sequência final do filme, para dizer, olhando nos olhos dos espectadores, que "o diabo não existe, ele vige dentro do homem", voltamos à dialética básica do filme. Do amor e do ódio, do afeto e do rancor, de Deus e do diabo, do real e da fabulação. É possível mesmo encontrar um fio de verdade no meio desse palavrório? Pouca gente sabe, mas Guel Arraes cursou por dois anos Antropologia na Universidade de Paris entre 1972 e 1974, quando viveu exilado do Brasil com a família por causa da ditadura militar.

Nada mal para um cineasta que, com "Grande Sertão", pretende investigar o comportamento do ser humano da maneira mais ampla possível. Guel também fez parte do Comitê do Filme Etnográfico de Jean Rouch, considerado o pai do cinema verdade, durante sete anos. Esse comitê de Rouch atuava como se fosse uma pequena produtora de filmes documentários. Não era uma escola de cinema, mas foi uma grande escola para Guel Arraes. Com quase 50 anos de audiovisual, ele termina a obra mais ousada da carreira com uma reflexão puramente etnográfica: "O diabo não existe real, o que existe é o homem humano".

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