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Aimé Césaire relê peça de Shakespeare pelo olhar de homem escravizado

'Uma Tempestade' faz nova versão da última dramaturgia do britânico ecoando o embate de Malcolm X e Martin Luther King

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Thaís Regina

É repórter e ensaísta

Uma Tempestade

  • Preço R$ 68 (144 págs.)
  • Autoria Aimé Césaire
  • Editora Temporal
  • Tradução Margarete Nascimento dos Santos

Com tradução de Margarete Nascimento dos Santos e prefácio de Eurídice Figueiredo, chega ao Brasil pela primeira vez "Uma Tempestade", livro de Aimé Césaire que faz uma releitura da peça "A Tempestade", de William Shakespeare.

homem negro com vestes de estampa tribal
Encenação de 'Uma Tempestade' de Aimé Césaire no American Shakespeare Center em 2022 - Anna Kariel/Divulgação

Em ambos os textos, a trama narra a vingança de um duque que foi traído, expulso da Europa e aterrado em uma ilha onde vivem apenas dois habitantes, que passam a ser escravizados pelo europeu enquanto ele busca formas de retornar a Milão.

Escritor, ativista e político, Aimé Césaire nasceu na Martinica, uma ilha no Caribe colonizada pela França, que até hoje é um departamento ultramarino francês. A trajetória de Césaire atravessa o teatro negro, a literatura e a política e influenciou o movimento ao redor do mundo ao cunhar o conceito de negritude.

Enquanto a peça original naturaliza a escravidão e tem seu foco na trama de vingança, a releitura de Césaire é inovadora ao deslocar o protagonismo para um dos escravizados, Calibã.

Escrita em 1611, "A Tempestade" reflete o imaginário britânico sobre as colônias. Não à toa, o nome escolhido para o escravizado rebelde, fisicamente disforme, seja "Caliban", um anagrama para canibal.

Com Césaire, o jogo muda. Logo na apresentação do protagonista em cena, o personagem renuncia a seu nome. O vínculo do leitor com Calibã é imediato e envolvente, tanto pelo seu inebriante desejo de liberdade quanto pela correlação entre o personagem e Malcolm X.

"Me chame de X. Vai ser melhor. Como quem diz ‘o homem sem nome’. Mais exatamente, o homem cujo nome foi roubado. A cada vez que você me chamar, isso me lembrará o fato fundamental de que você me roubou tudo, até mesmo minha identidade", ele diz ao colonizador.

Embora a proposta da peça seja a guinada do protagonismo, o texto de Césaire vacila por não apresentar os personagens muito além da escravidão. No livro, há poucas cenas de Calibã sozinho e apenas um diálogo entre ele e Ariel, seu irmão, que estava preso quando o europeu chega à ilha e, por isso, se comporta de forma mais subserviente.

A releitura de Césaire sustenta dois conflitos centrais —entre o colonizador e Calibã e entre Calibã e Ariel. O conflito entre os dois irmãos, sobre como responder à opressão, é o que ressoa como mais interessante nos dias de hoje.

A única cena dos irmãos juntos é um diálogo afetivo e denso sobre estratégias de resistência. Enquanto Calibã é um radical, Ariel acredita na tomada de consciência do colonizador, refletindo a disputa de discursos da luta por direitos civis nos Estados Unidos.

É uma pena que a peça não tenha mais diálogos entre eles, e o livro termina com a sensação de que não chegamos a conhecer esses irmãos para além dessa diferença fundamental.

Calibã é um herói que fracassa em momentos decisivos, e sua jornada não é triunfal nem óbvia. A peça foi publicada em 1969, quatro anos depois do assassinato de Malcolm X e um ano depois do de Martin Luther King Junior, e reflete tanto a desilusão com a luta pelos direitos civis quanto a urgência de retomar a radicalidade.

Assim, "Uma Tempestade" consagra em si o melhor da rebeldia, do orgulho e da insubmissão que borbulharam no peito de cada descendente da diáspora africana na década de 1960.

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