Descrição de chapéu Governo Milei Argentina

Milei é cruel com a cultura argentina, diz escritora Selva Almada, indicada ao Booker

Finalista de prêmio internacional vê programa de exportação da literatura minguar enquanto edita 'O Vento que Arrasa' no Brasil

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Capa do livro 'O Vento que Arrasa', da argentina Selva Almada, relançado pela Todavia

Capa do livro 'O Vento que Arrasa', da argentina Selva Almada, relançado pela Todavia Divulgação

Buenos Aires

Logo em frente ao café no qual Selva Almada marca essa entrevista, na avenida Corrientes, uma das artérias de Buenos Aires, há uma grande igreja evangélica. Seu prédio de paredes e pilastras brancas não é monumental como algumas das unidades construídas no Brasil, mas ainda assim destoa no centro do residencial bairro de Almagro.

Nada proposital, é claro, mas impossível não remeter ao enredo de "O Vento que Arrasa", o primeiro romance dela, que é um dos principais nomes da literatura argentina atual. Publicado em 2012 e traduzido no Brasil pela Cosac Naify pouco depois, o título é agora relançado pela editora Todavia, que já publicou dois outros livros seus.

Selva Almada posa para retrato em Paraty em 2018
Selva Almada posa para retrato em Paraty em 2018 - Keiny Andrade/Folhapress

Há 12 anos a argentina adiantou, de certo modo, o debate sobre a presença evangélica em seu país, um tema que só ganharia tração na arte e na academia anos depois. É uma espécie do método de Almada: olhar para as beiradas, não para o umbigo portenho do país.

O romance que narra a história do reverendo Pearson, de sua filha, Leni, do mecânico Gringo Brauer e seu filho, Tapioca, foi escrito com base no que ela observou em diferentes viagens à província de Chaco, na porção norte e uma das mais empobrecidas da Argentina. Seu marido nascera ali.

"Chamava muito a atenção o avanço evangelista que se via nesses lugares mais distantes, ainda não tanto em Buenos Aires. Estava em qualquer lugar, numa garagem de casa, num galpão."

Foi com histórias que fogem do eixo mais conhecido da Argentina que Almada foi indicada ao Booker Internacional, prêmio que seleciona os melhores livros estrangeiros traduzidos ao inglês e editados no Reino Unido ou na Irlanda.

Ela concorre com "Não É um Rio", de 2021, já publicado no Brasil. A obra é a caçula de sua "trilogia dos varones", ou trilogia masculina, da qual "O Vento que Arrasa" foi a primeiro. Entre um e o outro, veio "Ladrilleros", este sem edição brasileira.

O livro tem duas tramas que se entrelaçam: a de um trio de amigos com uma forte carga de sofrimentos que vive seus momentos mais importantes às margens desse rio e a de duas irmãs cheias de vida que têm pouco tempo para aproveitá-la.

Almada concorre, entre outros, com "Torto Arado", do baiano Itamar Vieira Junior, também publicado pela Todavia, e o vencedor será conhecido nesta terça-feira.

Como a escritora se sentiu com a indicação? Contente, é claro. Era a quarta obra que a Charco Press, sua editora britânica, enviava para a premiação. E, enfim, vingou. Mas de certo modo também há um gosto bem amargo nisso tudo.

A publicação de "Not a River", em inglês, foi possibilitada por um programa da diplomacia argentina criado em 2009 para apoiar a tradução de obras locais no exterior, o chamado Programa Sur. Desde aquele ano, mais de 1.600 traduções foram viabilizadas. Mas o programa minguou sob o governo do presidente ultraliberal Javier Milei.

"Qué sé yo...", ou sei lá, diz a autora em seu típico espanhol argentino. "É mais uma das medidas de tudo que está acontecendo com esse governo em relação a um montão de temas relacionados à cultura. Parece que há uma crueldade com o setor cultural."

Sob a batuta de Milei, o Programa Sur está na geladeira. Ainda não se sabe qual será seu orçamento para este ano, mas a imprensa divulgou nas últimas semanas que os planos são reduzi-lo a 10% do valor de 2023, quando foram destinados quase US$ 320 mil, equivalentes a R$ 1,6 milhão.

"A todo momento há algum comentário sobre a cultura como algo sem importância, isso quando não é tratada como algo a combater", diz Selva. "No melhor dos casos esse governo terminará em quatro anos e virá outro, mas toda essa destruição que se pode fazer... Podem apagar com uma canetada algo que se levou décadas para construir."

"E isso é o mais doloroso: depois teremos de reconstruir tudo, e levaremos mais outras décadas. Sem contar a ideia que semeiam na população de que tudo o que se investe em cultura é dinheiro roubado da saúde, da educação, quando isso é uma mentira", diz ela. "Vai se gerando um caldo de ressentimento com a cultura."

Milei é autor de alguns livros, incluindo um recente sobre teoria econômica, e até há pouco tempo namorava com uma comediante. Mas entrou em pé de guerra com o setor cultural ao desfinanciar ou enxugar de maneira expressiva o orçamento de todos os órgãos da área que é uma espécie de soft power argentino.

Em 2023, mais de 120 obras argentinas foram traduzidas no exterior graças ao Programa Sur. Com a verba modesta de US$ 3.000, foram publicados em inglês 3.000 exemplares de "O Vento que Arrasa", o finalista argentino do Booker. Naquele mesmo ano o programa viabilizou a publicação de dez obras argentinas no Brasil.

Para além das incertezas na cultura, essa autora que há anos veste os pañuelos verdes em defesa do direito ao aborto teme consequências para as mulheres. A coalizão de Milei, Liberdade Avança, afirma querer derrubar a legalização do aborto no país.

A escritora não vem de uma família onde essa bandeira era presente, mas viu na mulheres mais próximas exemplos de independência. A mãe terminou o ensino médio apenas quando a filha tinha em torno de 16 anos. A avó, empregada doméstica em Buenos Aires, obrigada a dormir nas casas dos patrões, pôde se aposentar graças a uma moratória previdenciária que facilitava a aposentadoria a mulheres que por décadas trabalharam, mas não eram registradas.

Falando poucos dias após um ataque de ódio matar três mulheres lésbicas em Buenos Aires, ela menciona o caso. "Começam a circular esses discursos de ódio contra gays, contra lésbicas, contra mulheres que abortam. Se esses discursos estão permitidos, é claro que a ação também passa a estar."

Prestes a viajar para uma maratona de um mês de trabalho na Europa, entre outras coisas para a cerimônia do Booker, ela se despede da repórter e aperta o passo rumo a sua livraria, a Salvaje Federal —cujo propósito é divulgar obras que surgem nas províncias argentinas mais afastadas de Buenos Aires.

O Vento que Arrasa

  • Preço R$ 69,90 (112 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Selva Almada
  • Editora Todavia
  • Tradução Samuel Titan Jr.

Não É um Rio

  • Preço R$ 56,90 (96 págs.); R$ 37,90 (ebook)
  • Autoria Selva Almada
  • Editora Todavia
  • Tradução Samuel Titan Jr.
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