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Teté Ribeiro

Madonna no Rio, com reprise na TV, mostra a grandeza de sua arte

Corpo da artista traduziu toda sua revolução em apresentação histórica, que será reexibida no Globoplay e na Multishow

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São Paulo

No princípio, era a dança. Ela disse isso no sábado passado, durante o show no Rio de Janeiro que será reexibido no Globoplay e no Multishow neste final de semana —às 21h no sábado e às 20h no domingo. Contou que aos 19 anos se mudou de Michigan, onde cursava a universidade, para Nova York, para se tornar uma dançarina profissional. E agora, aos 65, era isso o que ela tinha se tornado. No caminho, compôs algumas músicas.

Era uma piada. E que maravilha ouvir Madonna fazendo piada de novo. No primeiro show desta turnê comemorativa dos 40 anos de carreira da cantora a que assisti, em janeiro, na cidade de Nova York, saí com a sensação de que ela tinha perdido alguma coisa. Era justamente o senso de humor.

A cantora Madonna em show na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro
A cantora Madonna em show na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro - Adriano Vizoni/Folhapress

Ela parecia fragilizada. Ainda não devia estar completamente recuperada da infecção bacteriana que a levou a um hospital no final de junho do ano passado, algo que a obrigou a adiar o começo da turnê —antes prevista para julho, no Canadá, mas que só começou em outubro, em Londres.

No palco do Madison Square Garden, em Manhattan, Madonna se dizia grata por estar viva e fez questão de afirmar que aquele era um show especial, porque na plateia estava a enfermeira que tinha cuidado dela em casa, quando finalmente recebeu alta do hospital.

No momento em que cantou e tocou uma música no violão, a canção escolhida para ser apresentada em Nova York foi um medley de "I'll Survive" com "La Isla Bonita". Emocionante e lindo, mas um pouco triste também. A mortalidade de Madonna, assim tão evidente, não era algo que eu queria testemunhar. Não naquele momento.

Mas foi o que mais me marcou —perceber a fragilidade de Madonna, seus limites, o corpo já não mais tão firme e forte, a presença não tão desafiadora, não tão insolente quanto a de outros shows a que já tinha assistido.

Em Copacabana, Madonna era outra. Ou melhor, a mesma, mas a de antes, não a do show de Nova York. Era a Madonna que eu queria, aquela mulher safada, divertida, rápida, rebelde e que deixa sempre claro que é a dona da festa e também quem mais vai se divertir.

Entre o mar, os morros e o Cristo Redentor, com uma ligação direta com o hotel mais tradicional da cidade, o Copacabana Palace, Madonna estava livre, poderosa e desafiadora. Carregada no colo por Pabllo Vittar, a cantora americana não ficou diminuída, mesmo que seu 1,61 metro parecesse uma cópia em miniatura ao lado do 1,87 de Pabllo. Era ela a dona de tudo ali. Era a ela que todos pediam a bênção.

Era aquele 1,61 metro de altura, com uma voz limitada e capacidade idem de compor músicas pop, mas um talento infinito para se fazer ouvida e vista, além de uma capacidade inigualável de ver o que acontecia às escondidas e a melhor maneira de mostrar isso ao grande público que a artista juntou. Era uma multidão de 1,6 milhão de pessoas, 40 vezes maior do que a população inteira de sua cidade natal, Bay City, no estado de Michigan. Mesmo que na realidade o público for menor, os números impressionam.

No princípio, era a dança. Foi com o corpo em movimento que Madonna quis conquistar seu lugar no mundo. Quando abandonou a faculdade para viver em Nova York, ela foi direto ao encontro de Martha Graham, a dançarina e coreógrafa americana que revolucionou a dança moderna.

Graham (1894-1991) é, para a história da dança, o que Pablo Picasso é para a história da pintura. Alguém que bagunça tanto os conceitos do que pode e do que não pode em sua arte que acaba criando uma nova maneira de se expressar.

Tem uma frase célebre de Graham que é sempre associada às suas biografias: "o corpo diz o que as palavras não podem dizer". Uma construção linda, pura poesia. Mas não deixa de ser intrigante que justamente uma frase tenha deixado esse lastro, em vez de um passo de dança ou uma coreografia.

Também não é por acaso que muito mais gente conhece Madonna do que Graham. E não é só porque Madonna é uma contemporânea da gente enquanto Graham tenha morrido há mais de 30 anos.

Possivelmente, o legado de Graham vai durar mais que o de Madonna. A dança nunca mais será a mesma depois de Graham, e a música pop, ou mesmo o comportamento das mulheres, quando estudados daqui a cem anos, podem citar Madonna como uma nota de rodapé de página, se o tal pesquisador do futuro for a fundo em seu trabalho.

Mas, enquanto está viva, cheia de graça, Madonna conseguiu ir além do alcance da dança. Isso aconteceu porque ela incorporou a linguagem em sua obra. Sem compor músicas, jamais seria tão popular. Sem dar as entrevistas que deu, nunca seria tão polêmica.

Sem se mostrar por inteiro, como no documentário "Na Cama com Madonna", de 1991, ela não teria alcançado o público que alcançou, não teria sido excomungada três vezes —duas durante o papado de João Paulo 2º e outra na gestão de Bento 16—, não teria ficado tão famosa, tão rica, não teria sido tão criticada nem tão elogiada.

E não teria juntado tanta gente, o maior público de sua carreira, nas areias da praia de Copacabana. Revolucionar o mundo da dança pode ser uma conquista que dure muito mais do que o que quer que seja o legado de Madonna, mas aquela menina apelidada de Madame X justamente por Martha Graham entendeu cedo que nós, seres humanos, podemos sentir emoções profundas vendo um corpo em movimento.

Mas, para mudar o mundo, a gente ainda precisa da linguagem. E de uns bons palavrões quando o vocabulário não dá conta do recado.

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