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Grupo Tapa faz uma montagem madura e envolvente de 'Tio Vânia'

Coletivo teatral consolida relação persistente com Tchékhov, escritor russo do século 19 cuja obra ainda se mantém atual

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São Paulo

Tio Vânia

Uma plateia que permanece atenta durante duas horas de espetáculo sem intervalo e grita "bravo" no final é a prova de que a montagem de clássicos tem espaço garantido no teatro contemporâneo, sem que para isso seja necessário recorrer a estratégias inovadoras ou até mirabolantes na adaptação.

No caso de "Tio Vânia", de Anton Tchékhov (1860-1904), que o Grupo Tapa apresenta no Sesc Santana, é o texto, escrito em 1896, que garante a atualidade dos temas abordados.

A imagem mostra três pessoas em pé e duas sentadas em cadeiras
Elenco de 'Tio Vânia', com o Grupo Tapa, em cartaz no Sesc Santana - Ronaldo Gutierrez/Grupo Tapa

Estão ali questões que mobilizam e provocam a sociedade até hoje, como a relação com a terra, a devastação em nome do progresso, a condição da mulher, o machismo, a vida vislumbrada e não realizada, a exploração do trabalho. Há ainda a citação a pessoas amontoadas em casebres devido a uma epidemia —de tifo—, as visões antagônicas sobre o meio ambiente e o questionamento doloroso e atemporal: qual é o significado da vida?

A trama gira em torno de tio Vânia, um proprietário de terras, de sua sobrinha Sônia e do médico Astrov, que atende e convive intimamente com a família. A vida do núcleo perde a estabilidade —e talvez o conformismo— após a chegada do professor aposentado Serebriakov e de sua jovem e bela esposa, Helena.

Sutil e elegante, o grupo leva "Tio Vânia" para o palco em um cenário simples e eficiente, manipulado pelos atores entre um ato e outro, em uma dramaturgia que revela intrigas amorosas, mágoas familiares e decepções, com toques de ironia, humor e melancolia.

Fundado na década de 1970 na PUC-Rio, ainda como grupo amador, e transferido para São Paulo em 1986, o Tapa nutria desde os anos 1980 o desejo de montar Tchékhov, o que foi possível em 1996, com "Ivanov", a primeira das cinco grandes peças do escritor e dramaturgo russo.

Em meio às tradicionais dificuldades vivenciadas pelos coletivos teatrais brasileiros, voltou ao autor apenas 20 anos depois, com "O Jardim das Cerejeiras". Na época, lidava com a possibilidade de chegar ao fim devido a problemas financeiros. O grupo decidiu que fecharia as portas no auge, com chave de ouro.

A peça, que poderia ter sido a última, resgatou o Tapa das ruínas e o sucesso da montagem garantiu a continuidade. A companhia chega agora aos 45 anos de profissionalização e celebra mais uma encenação do autor russo com quem mantém uma longa e persistente relação.

Na pandemia, duas das peças curtas de Tchékhov, "O Urso" e "Um Pedido de Casamento", fizeram parte do repertório de 14 vídeos teatrais realizados pelo Tapa.

Apesar dos anos de distância, uma montagem alimenta a outra e o grupo encena "Tio Vânia" com uma maturidade que parece ser reconhecida pelo público.

Persistência, aliás, é uma boa palavra para falar sobre grande parte do elenco do espetáculo, formado por veteranos que sobrevivem às pedras no caminho, incluindo a pandemia e a recente onda de perseguição à cultura.

Há quem vá ao teatro para ter a oportunidade de ver em cena determinado artista e Walderez de Barros (Marina/Babá) está nessa categoria. Olhares, gestos e a impagável imitação de um animal que grasna explicam o fascínio pela atriz de 83 anos que compõe o elenco afiado.

A imagem mostra uma mulher em pé e um homem sentado na cadeira
A atriz Walderez de Barros e o ator Zécarlos Machado em cena do espetáculo - Ronaldo Gutierrez/Grupo Tapa

Em "Tio Vânia", o Tapa reencontra a atriz após 30 anos. A última colaboração presencial de Walderez com o grupo havia ocorrido em 1993, em "Querô, Uma Reportagem Maldita", de Plínio Marcos, com quem ela foi casada durante duas décadas. Na pandemia, Walderez participou de uma versão digital de "As Portas da Noite", de Jacques Prévert.

Outra veterana, Lilian Blanc, 74, volta ao Tapa no espetáculo como a personagem Maria. Ela estreou profissionalmente no grupo na década de 1990 quando, com os filhos crescidos, realizou o desejo de dedicar-se às artes cênicas.

A tradução da peça, assinada pelo diretor Eduardo Tolentino de Araújo, ocorreu diretamente do russo e será publicada em uma edição da coleção Em Cena, da Edusp.

"Todo mundo tem um tio Vânia, que nas festas familiares diverte as crianças com truques e comentários escatológicos e aos adultos com piadas picantes que, ao subir do teor etílico, vão se tornando ácidas, até ficarem desagradáveis por colocar o dedo em feridas ocultas da família", diz Tolentino.

Vânia vai do sarcasmo ao desconsolo, do deboche à constatação da própria mediocridade, da paixão ao desespero pelos longos dias e noites a serem enfrentados.

Todos somos um pouco tio Vânia. Todos temos feridas, ora ocultas, ora expostas.

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