A era do aquecimento global apresenta um desafio gigantesco tanto ao senso comum quanto à ficção literária, argumenta o escritor indiano Amitav Ghosh.
"Os eventos climáticos da nossa época têm alto grau de improbabilidade. Não é fácil acomodá-los ao mundo deliberadamente prosaico da ficção séria em prosa", escreve ele.
A inverossimilhança é inimiga dos escritores, e introduzir o improvável na literatura faz com que ela "corra o risco de ser banida para as moradias humildes" da fantasia, do terror e da ficção científica. "É como se, na imaginação literária, as mudanças climáticas fossem de alguma forma semelhantes a extraterrestres ou viagens espaciais."
Não faz muito tempo que Ghosh escreveu isso. Seu livro "O Grande Desatino" foi publicado com barulho em 2016 e abordava não só a crítica literária, mas a crise de imaginação que faz com que toda a sociedade ocidental assista meio catatônica aos eventos que, como indica a ciência, devem mudar radicalmente o mundo que conhecemos.
O livro chegou ao mercado brasileiro pela Quina há dois anos. E agora, quando o repórter pergunta ao autor se algo mudou nesse período, ele é assertivo. "Sim, muito."
Ghosh assinala que desde a publicação do romance "The Overstory" pelo americano Richard Powers —que sairá no próximo ano pela Todavia—, houve uma torrente de literatura de preocupação climática mais evidente. Mas o indiano diz não ter ressaltado o suficiente em sua obra que o problema nunca foram os escritores, mas um "ecossistema literário" que entendeu "tudo errado".
"O mundo da literatura, as editoras, a crítica literária, é na verdade muito conservador", afirma ele, em entrevista por videoconferência. "E dá para entender, porque são pessoas muito bem educadas, com frequência vindas de famílias de elite, então não levam a sério nada fora da literatura tradicional."
O tipo de ficção consagrado a partir do século 19, irradiado da Europa, tem no centro as narrativas individuais e gira em torno de umbigos humanos —por isso, segundo Ghosh, são pouco compatíveis com acontecimentos como as tragédias climáticas, que irmanam a todos num coletivo e deslocam o foco para a natureza.
Um sintoma da mudança recente que houve nesse julgamento estreito de qualidade literária, diz ele, está na valorização de escritoras que pesam a mão numa "literatura da imaginação", a exemplo de Octavia Butler, Margaret Atwood e Ursula Le Guin, que se mantêm mais relevantes que muitos autores realistas.
A pesquisadora Ana Rüsche, que é doutora pela Universidade de São Paulo e se tornou referência na intersecção entre estudos literários e climáticos, reforça que o cânone ocidental sempre teve uma concepção rígida de progresso, desprezando narrativas divergentes para a vala da literatura menor.
Mas ela diz que a preocupação com ecologia e "os efeitos da ação humana desmesurada" no planeta aparecem na arte desde pelo menos o século 18. Pense até mesmo no monstro vegetariano de "Frankenstein", de Mary Shelley —não por acaso, encarada como uma das obras inaugurais da estante da ficção científica.
Além disso, o que são clássicos da literatura brasileira como "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, e "Não Verás País Nenhum", de Ignácio de Loyola Brandão, senão ficções sobre as crises climáticas —que, à sua época, não foram lidas com esse rótulo?
Hoje, quando acontecimentos catastróficos como o do Rio Grande do Sul mostram que a emergência não é mais parte do futuro, e sim do presente, também cresce a boa ficção que lida com o tema, aponta Rüsche. A pesquisadora cita, por exemplo, "A Extinção das Abelhas", romance de Natalia Borges Polesso que foi finalista do Jabuti, e "O Deus das Avencas", coleção de narrativas curtas de Daniel Galera.
A escritora gaúcha Morgana Kretzmann acaba de lançar "Água Turva", um livro que tem sido recebido como premonitório nos círculos de leitura que ela tem frequentado —apesar de sua história se distanciar muito das chuvas trágicas que tomaram seu estado, ela ainda é carregada de tensão com o meio ambiente.
Na trama policial, o Parque Estadual do Turvo, que fica na divisa do Rio Grande do Sul com a Argentina, é ameaçado por queimadas e pelo alagamento de uma hidrelétrica empurrada ali por políticos maliciosos —os personagens também expressam volta e meia o choque com o calor repentino e as mudanças no território uma vez natural.
"Antes as pessoas diziam de cara que não iam gostar de um livro sobre questões ambientais", afirma a autora. "Percebi uma mudança, claro que um pouco em função da crise no Sul, mas sinto que as pessoas não estão vendo mais isso como algo chato, há um interesse que se nota até nas vitrines das livrarias."
A editora Luara França, hoje gerente editorial da Aleph, lembra mesmo que costumava ser lugar-comum no mercado rejeitar, ou ao menos desestimular, a publicação de obras que tocassem em discussões climáticas porque, supostamente, "ambientalismo não vendia".
Tanto ela quanto Kretzmann citam um mesmo autor como ponto fulcral de virada no debate público: o líder indígena Ailton Krenak, colunista deste jornal que passou a ampliar um pensamento que foge ao umbiguismo ocidental em publicações populares como "Ideias para Adiar o Fim do Mundo" e "A Vida Não É Útil".
A arte não tem obrigação de nada, acrescenta Kretzmann, mas "pode colaborar com mudanças de pensamento". "Pode fazer com que surja uma consciência, principalmente nas novas gerações, para que entendam que o tique-taque do relógio está gritando e as pessoas fingem não escutar."
Afinal, o indiano Amitav Ghosh é cético diante do efeito de tragédias como a do Rio Grande do Sul para conscientizar um país. "É estranho que tantos cientistas achem que o clima vai fazer o trabalho da política", comenta ele. "Não vai."
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