Pela primeira vez na sua história, o México deve eleger uma presidente mulher. Para as eleições deste ano, agora em junho, duas candidatas estão no topo das intenções de votos: a ex-prefeita da Cidade do México, Claudia Sheinbaum, e a ex-senadora Xóchitl Gálvez.
Um marco histórico, principalmente se olhamos para os altos índices da violência de gênero no país. Ou para atitudes como a do atual presidente, Andrés Manuel López Obrador, que já apoiou a candidatura de um governador acusado de estupro por diversas mulheres. Mas apesar do cenário hostil, o México foi o mais recente país da América Latina a descriminalizar o aborto.
É com esse contexto de disparidades políticas e sociais que chega ao Brasil o romance "Bruxas", da jovem escritora mexicana Brenda Lozano. Com tradução de Silvia Massimini Felix, é o primeiro livro da autora por aqui.
O ponto de partida do romance é o feminicídio de Paloma, que pertence a uma família de homens curandeiros e nasceu Gaspar. Paloma era muxe, pessoa sem gênero definido na cultura zapoteca ao sul do México. Nem femininas nem masculinas, essas pessoas acabam identificadas como homens ao nascer e depois podem mudar.
Se o crime é ponto de partida, nem de longe é o tema principal de "Bruxas". Ao saber da morte de Paloma, Zoé, uma jornalista que vive na metrópole, decide escrever um artigo a respeito. Viaja até o pequeno povoado de San Felipe para entrevistar Feliciana, uma renomada curandeira amiga da morta. O que seria uma entrevista vira uma jornada de cura que aproxima tradição e atualidade nas figuras de Feliciana e Zoé.
Feliciana, aliás, é inspirada em uma pessoa real: María Sabina Magdalena García, curandeira mazateca que viveu em Oaxaca e ganhou fama entre artistas e políticos do mundo todo. Lozano não cita María Sabina, mas uma nota da edição em inglês esclarece que a personagem seria inspirada em sua vida.
A mulher domina o que chama de "A Linguagem" e possui "O Livro". Ainda que não saiba ler, tem uma maneira única de usar as palavras, que alia a suas ervas e cogumelos para curar males da alma e do corpo. E é nas chamadas veladas, os rituais de cura, que o seu saber ancestral se realiza de modo mais profundo.
A cada capítulo do romance, Feliciana e Zoé se intercalam dando depoimentos. A dicção contínua e oralizada de Feliciana é seguida pela voz objetiva e sóbria de Zoé. Em paralelo, as duas vidas são narradas até que se cruzam.
A questão de gênero, em todo caso, atravessa o romance inteiro. Amor, violência, sexualidade, aborto, relacionamentos, maternidade, carreira, luto, doenças, ancestralidade: os temas são tratados com uma afetividade precisa e simples por Lozano, o que acaba por comover e gerar identificação.
Alguém mais atento identificará que, por trás dessa simplicidade, há uma constelação de debates contemporâneos. Tantos que o romance poderia soar inflacionado pela urgência de dar conta de tudo que precisa ser visto e revisto, mas se sustenta justamente pela habilidade em contar histórias.
Atravessado por uma gama de questões de primeira importância, "Bruxas" não é um romance de tipo panfletário nem trata com decoro ou estereotipa o que quer amplificar. No entanto, a autora mantém posicionamentos claros: quem protagoniza, quais características diferenciam as personagens, suas falas, tudo no romance tem função.
Afinal, "Bruxas" parece seguir um dos conselhos de Paloma: "nós temos que trazer flores pras guerras em que estivemos, meu amor".
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