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Livros

Janet Malcolm se recusa a se revelar mesmo em textos autobiográficos

Jornalista americana fica entre o curioso e o entediante nas memórias póstumas do livro 'Imagens Imóveis'

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Victor Calcagno

Jornalista, é doutorando em literatura na PUC-Rio, onde também fez mestrado sobre Janet Malcolm

Imagens Imóveis - Sobre Fotografia e Memória

  • Quando Lançamento em 20/2
  • Preço R$ 64,90 (184 págs.); R$ 37,90 (ebook)
  • Autoria Janet Malcolm
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Paulo Henriques Britto

Quando o assunto é escrita de si, o crítico Phillip Lopate afirma que, em geral, o defeito de um texto está em "não ser pessoal o bastante". Com isso em mente, não é exagero dizer que dos 13 livros escritos pela jornalista americana Janet Malcolm, o recente "Imagens Imóveis" talvez seja o pior.

Afinal, é o único em que o assunto é a própria Malcolm e o único em que, indo contra a ousadia que eternizou sua brilhante escrita jornalística, a autora se recusa a mergulhar no personagem escolhido.

Quando Malcolm morreu aos 86 anos, em junho de 2021, parte dos textos incluídos neste livro, lançado nos Estados Unidos no ano passado, já tinham aparecido nas revistas New Yorker e The New York Review of Books —as mesmas em que a escritora se tornou referência obrigatória em cursos de jornalismo pela sagacidade, qualidade textual e metalinguagem crítica.

Janet Malcolm em 1981 - NYT

Famosa pela discrição pessoal, a autora de "O Jornalista e o Assassino" tentava, já ao fim da vida, investigar-se.

A forma escolhida foi a fotografia, tema que conhecia bem desde os anos 1970, quando se firmou escrevendo sobre fotógrafos e exposições. Seguindo uma foto de família, em geral relacionada aos anos de juventude, a autora descreve e analisa as lembranças ao redor da imagem. É nessa mesma combinação que todos os capítulos de "Imagens Imóveis" são compostos.

O tom autobiográfico, maior que o de crítica, domina o livro e não indica que a vida de Malcolm tenha sido exatamente desprovida de comoção.

Nascida Jana Wienerová na então Tchecoslováquia em 1934, ela e sua família judia fugiram da escalada nazista nos últimos segundos, mudando-se para os Estados Unidos. A fuga de Praga num trem é uma das fotos que abrem o volume póstumo e em que, pela primeira vez, Malcolm usará uma frase a ser repetida até o fim do livro: "Não me lembro de..." Neste caso, diz não se lembrar da viagem.

Esquecer-se é algo comum. Mas as ocasiões em que Malcolm diz não ter lembranças específicas, contadas para além das três dezenas, parecem revelar algo que supera as simples falhas de memória, apontando para uma hesitação que a autora, ironicamente, conhecia muito bem.

No seminal e curtíssimo texto "Reflexões sobre autobiografia de uma autobiografia abandonada", de 2010, a jornalista concluía que não conseguia "se inventar", como exigem os textos autobiográficos, tema que a interessava particularmente.

A culpa era justamente da sua carreira jornalística: "Percebo que meus hábitos de jornalista inibiram meu amor-próprio. Não somente fracassei em tornar meu jovem eu tão interessante quanto os estranhos sobre os quais escrevi, como retirei minha afeição."


A pretensa falta de amor-próprio funcionaria melhor em "Imagens Imóveis", no entanto, se viesse na forma de profundidade, revelações, exposição, narrativas roteirizadas, intrigas ou o que mais é possível entender por "inventar a si mesmo". Malcolm se recusa abertamente a fazer isso, mas há dois capítulos que ensaiam maior franqueza, os melhores do livro.

Em um deles, relata sua relação a princípio extraconjugal com o editor Gardner Botsford e interrompe bruscamente o texto: "Prefiro ser reprovada numa prova de redação a expor os segredos patéticos do meu coração." Neste caso, o amor-próprio é vilão por se impor além da conta, não por faltar.

Faz sentido, portanto, dizer que a maioria esmagadora das memórias de Malcolm —sobre a vida infantil em Nova York, a comunidade tcheca exilada, a família e os primeiros amores— é no melhor dos casos curiosa, e, no pior, de um tédio ingênuo.

A sorte é que o estilo primoroso de texto sempre foi uma das suas prioridades, o que inclui bons comentários sobre memória e a prática de escrever sobre os outros. Este último dilema é digno de discussões sempre que o assunto é a escrita de caráter pessoal, não raro rendendo boas perguntas –tão bem colocadas pela própria Malcolm em "A Mulher Calada".

É pena que em "Imagens Imóveis" a resposta venha em memórias que se recusam, em nome da ética ou pudor, a se mostrarem por inteiro. Ou, como diz Lopate, memórias que preferem não ser pessoais o bastante.

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