Hoje, Tolstói e Dostoiévski se tornaram figuras literárias tão gigantescas que é fácil esquecer o tamanho de Ivan Turguêniev. Para a maioria dos leitores europeus do século 19 e começo do 20, foi ele a porta de entrada para a grande literatura oitocentista russa.
Turguêniev era ao mesmo tempo familiar —vitoriano e comedido como Gustave Flaubert e Henry James— e atraentemente exótico, muito mais palatável que a alteridade radical representada pelo outros dois russos.
Seu livro de estreia, "Memórias de um Caçador", parece composto por contos apolíticos e ingênuos sobre pobres camponeses, mas é considerado uma causa direta da emancipação dos servos, o equivalente russo da abolição da escravatura.
Seus romances posteriores, como "Pais e Filhos", não se posicionam tanto quanto essa primeira obra, mas são famosos por retratarem de forma realista os debates políticos que chacoalhavam a Rússia. Apesar de hoje parecerem quase inócuos, em sua época foram considerados polêmicos.
No fim da vida, Turguêniev abandona seu estilo naturalista e embarca no simbolismo literário então corrente na França, onde morava, e que começa a surgir na Rússia nas últimas décadas do século 19. A melhor representação dessa sua nova fase é a novela "Clara Militch", que era inédita no Brasil e sai agora na coleção "A Arte da Novela", da Grua Livros.
A atmosfera rarefeita e penumbral de "Clara Militch" remete mais aos contos de terror vitorianos, ao alemão E.T.A. Hoffmann e ao americano Edgar Allan Poe do que à ideia que a maioria das pessoas tem da literatura russa.
A história se inspira em um fato, acontecido em 1881: por causa de um amor não correspondido, uma cantora de 28 anos se envenenou antes de uma apresentação e morreu em pleno palco.
Na novela de Turguêniev, o protagonista Iákov Arátov tem apenas uma breve conversa com Clara Militch antes de seu suicídio. Depois, fica obcecado para saber mais sobre a cantora que teria pretensamente morrido por ele. Ela o amava? Por quê? O que se segue é uma narrativa onde as questões sociais concretas cedem espaço ao existencial e ao espiritual, a sugestões fantásticas e alusões fantasmagóricas.
A novela estabelece um diálogo interessante com outro clássico, "Eugênio Onêguin", obra-prima de Aleksandr Púchkin, considerado o pai da literatura russa. Em sua performance, Militch encara Arátov e declama a carta de Tatiana a Onêguin, ponto alto da obra, em que ela lhe declara seu amor.
A cantora parece estar dizendo a Arátov: "você é meu Onêguin". E ele, como o outro personagem, foge. Tatiana se recupera e triunfa, Clara se mata e assombra o amado. Ou não. É justamente a falta de qualquer certeza sobre o que está realmente acontecendo, esse eterno estado de dúvida entre o real e o sobrenatural, que caracteriza a novela como fantástica.
A tradução e as notas são fruto da dissertação de mestrado de Giselle Moura na Universidade de São Paulo. Além das explicações tradicionais, contextualizando figuras históricas e mostrando como funcionam os patronímicos, a tradutora compartilha deliciosas fofocas da vida de Turguêniev.
Por exemplo, ele passou a vida seguindo pela Europa a cantora lírica franco-espanhola Pauline Viardot, na época uma estrela muito mais famosa que ele. Sua mãe, que era contra o relacionamento, só se referia a Viardot como "a cigana". No enredo, em seu momento de maior raiva contra Clara, o pior xingamento em que Arátov consegue pensar é "cigana".
Turguêniev morre na casa de Viardot, na França, em 1883, mesmo ano em que é publicada "Clara Militch". Não há nada a ser criticado nessa perfeita história de fantasmas vitoriana, com exceção do fato de ser pior do que praticamente tudo que Turguêniev escreveu.
Para quem é fã do autor, ou de contos fantásticos, a leitura vale muito a pena. Mas, para quem quer saber por que Turguêniev é um dos maiores autores de todos os tempos, essa resposta não está em "Clara Militch".
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