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Série 'The Chosen', na Netflix, se sai bem ao contar a história de Jesus

Trama sobre os Evangelhos tem o desejo de ser tão envolvente quanto obras como 'Game of Thrones' e 'Breaking Bad'

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São Carlos (SP)

Transformar a trama dos Evangelhos numa série de streaming que seja potencialmente tão viciante quanto "Game of Thrones" ou "Breaking Bad" é o objetivo declarado dos criadores de "The Chosen".

Imagem da série 'The Chosen', disponível na Netflix
Imagem da série 'The Chosen', disponível na Netflix - Divulgação

Não se trata de um desafio fácil de vencer, em grande medida por causa das características peculiares da narrativa do Novo Testamento, ainda que o seriado, em diversos momentos, quase chegue lá.

Com efeito, qualquer um que tente aplicar a fórmula das séries do século 21 ao texto dos evangelistas se depara com ao menos dois grandes obstáculos. O primeiro é a extrema economia do texto bíblico. É muito raro que os Evangelhos explorem a história pessoal e a psicologia dos aliados ou adversários de Jesus.

Quase todos os 12 apóstolos, por exemplo, são pouco mais do que meros nomes nessas narrativas. Nem o leitor mais devoto da Bíblia é capaz de descobrir algo de relevante sobre a personalidade e os feitos de Bartolomeu, Tadeu ou Simão, o Zelota, digamos, a não ser que use informações da tradição cristã que não estão presentes no Novo Testamento propriamente dito.

O segundo grande dilema, normalmente minimizado na cabeça do público pelos milênios de entronização dos Evangelhos no cotidiano das igrejas cristãs, é o fato de que eles trazem quatro respostas diferentes e, às vezes, até contraditórias para uma mesma pergunta. "Quem é Jesus?"

Afinal, estamos diante de um quarteto de autores distintos, quatro evangelistas, designados tradicionalmente com os nomes de Mateus, Marcos, Lucas e João, que estruturam sua história adotando prioridades e perspectivas teológicas diversas.

É verdade que Mateus, Marcos e Lucas, tradicionalmente classificados como os Evangelhos "sinópticos", do grego "vistos em conjunto", têm muitas semelhanças de estilo e arquitetura narrativa entre si, em parte pelo aparente uso compartilhado de fontes cristãs mais antigas. Mas claramente ainda persiste um abismo entre o trio e João, o estranho no ninho.

Enfrentar o primeiro problema é, em tese, mais fácil, e "The Chosen" o resolve de maneira frequentemente cativante para quem já conhece essas histórias, às vezes usando o mínimo de pistas presentes nos Evangelhos para preencher com alguma carne imaginativa o esqueleto dos apóstolos.

É o caso de Tomé, interpretado por Joey Vahedi. Celebrizado como o apóstolo da dúvida no Evangelho de João, ele luta contra a própria incredulidade já no seu primeiro contato com Jesus na série. Ou o de Mateus, vivido por Paras Patel, duplamente pária em "The Chosen" não só pelo seu papel de cobrador de impostos em nome dos odiados romanos, como também pela obsessão por números e dificuldade com relacionamentos humanos. Quase um Sheldon Cooper da Galileia.

O segundo obstáculo é bem mais difícil de contornar. Para a abordagem escolhida pelos criadores da série, em favor do retrato mais íntimo e direto possível da relação entre o Nazareno e os que o seguem, os Sinópticos funcionam relativamente bem. Com algum esforço, dá para imaginar o Jesus de Mateus, Marcos e Lucas sorrir e dar de ombros após realizar uma cura, como faz Jonathan Roumie na série.

Mas cabe a Roumie, ao mesmo tempo, emitir os pronunciamentos teologicamente complexos do Evangelho de João, nos quais Jesus se distancia de forma decisiva dos mortais ao seu redor e declara seu status similar ao de Deus pai.

Nesses casos, uma certa incongruência é inevitável, embora esse dilema seja justamente o que impulsionou séculos de debates e disputas duríssimas acerca da verdadeira natureza de Cristo.

Quando comparamos "The Chosen" com a longa tradição audiovisual bíblica, é difícil não se perguntar se a série representaria certo desafio a essa história. Para começar, não se ouve um único personagem falando com sotaque britânico, o que já foi quase regra nesse tipo de produção, e mesmo o inglês "padrão" dos Estados Unidos só sai da boca dos soldados romanos, curiosamente.

Tanto na aparência quanto na maneira de falar, os personagens da série lembram um conjunto etnicamente diverso de "imigrantes", termo, aliás, que aparece num dos flashbacks do Antigo Testamento na primeira temporada.

Ao menos do ponto de vista do público americano. A produção parece estar bastante ciente de que o centro de gravidade do cristianismo está se deslocando cada vez mais de sua imagem tradicional como um conjunto de crenças "branco" e europeu.

The Chosen

  • Quando Já disponível
  • Onde Netflix e GloboPlay
  • Autoria Dallas Jenkins
  • Elenco Elizabeth Tabish, Shahar Isaac, Jonathan Roumie, entre outros
  • Produção EUA, 2017
  • Direção Dallas Jenkins
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