Os indígenas tupinambás tecem mantos há séculos, vestes sagradas usadas em rituais específicos pelo pajé, cacique e pelas sacerdotisas da aldeia. Onze peças sobreviveram ao tempo desde a sua concepção por volta do século 16 e, hoje, todas elas estão na Europa.
Um desses mantos ganhou notoriedade em julho deste ano, quando o Museu Nacional do Rio de Janeiro anunciou que receberia uma doação do Museu Nacional da Dinamarca, o Nationalmuseet, após a conclusão de negociações que se estendiam havia dois anos. O majestoso manto de penas vermelhas de guará, datado do século 17, estará de volta ao Brasil no ano que vem.
Mas o intervalo de séculos foi interrompido quando, em 2006, Glicéria Tupinambá, ativista e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, costurou o primeiro manto se inspirando nos saberes de seus antepassados. Depois que visitou o manto rubro na Dinamarca, ela foi incumbida, em sonho, de retomar a costura dos mantos com o mesmo ponto de costura daquele com 400 anos de idade.
Agora, o último manto que fez, de 2021 e com quase 4.000 penas, ganha uma exposição itinerante em São Paulo. De setembro a outubro, a veste passará pela Casa do Povo, centro cultural no Bom Retiro, pela aldeia Kalipety, pelo Museu das Culturas Indígenas, pela Pinacoteca, pelo Museu do Ipiranga e pela Ocupação 9 de Julho.
"O manto foi feito para as mulheres indígenas que o usavam", diz Tupinambá. "A exposição é itinerante para despertar a memória da participação dos tupinambás na história do Brasil."
Segundo Benjamin Seroussi, curador e diretor artístico da Casa do Povo, deixar o manto exposto num mesmo lugar por três meses seria prender a veste, um agente com memórias próprias para o povo tupinambá.
"O manto é um agente para os tupinambás dialogarem com o mundo dos encantados. Ele não é só um objeto a ser exposto, mas um ente, e por isso precisa estar em movimento", diz Seroussi. "Para mim, é como se ele estivesse morando na Casa do Povo por um tempo."
O manto costurado por Glicéria Tupinambá é diferente daquele rubro que, em breve, estará no Rio de Janeiro. Formado por penas douradas, pretas com bolinhas brancas, azuis, brancas e laranjas, a veste parece mais curta, mas também tem um capuz.
Com um fio de algodão selado por cera de abelha, Tupinambá junta as penas uma a outra. Algumas foram colhidas por crianças que, curiosas, as acharam no chão da aldeia. "O manto envolve várias pessoas e vários saberes", ela diz.
"Ele não parece exatamente o manto de pena de guará, mas, 500 anos depois da invasão, o manto não poderia voltar a ser igual. A Glicéria não tentou imitar o manto antigo, mas reencontrar o gesto para chegar ao que foi feito", diz Seroussi, da Casa do Povo.
Classificar a arte feita por indígenas como contemporânea, segundo Seroussi, pode ser uma faca de dois gumes. "Elas [as produções indígenas] correm o risco de serem domesticadas e ocidentalizadas, porque são levadas a entrar em cânone que dialoga mais com a produção europeia. Por outro lado, também promovem a variação [nos museus] e permitem outros caminhos para se pensar a arte."
O curador diz que o manto é exposto em boa hora, quando a discussão em torno das mudanças climáticas e da demarcação de terras indígenas estão em alta. Segundo Glicéria Tupinambá, um manto chama o outro, e em breve ambos estarão reunidos no Brasil.
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