A editora L&PM acaba de publicar no Brasil a biografia "Louis Vuitton: Uma Saga", tradução realizada por Julia da Rosa Simões do livro de Stéphanie Bonvicini, lançado em 2004 pela Fayard, "Louis Vuitton: Une Saga Française".
A decisão de suprimir do título o substantivo pátrio é digna de nota, porque efetivamente ao narrar a biografia da marca Louis Vuitton, uma das "mais prestigiosas do planeta", como está dito na contracapa da edição brasileira, a autora relata uma parte da história da França ao longo de quase todo o século 19 e até o final do 20.
Dividido em quatro partes e mais de uma centena de subtítulos, o livro conta a história do malletier Louis Vuitton, o fundador da marca de bagagens, até Patrick-Louis Vuitton, filho de Claude, que foi um dos filhos de Gaston, que por sua vez era o filho mais velho de Georges, único filho homem de Louis.
"Nascimento de um Mito, 1821-1854", "O Império Louis Vuitton, 1854-1870", "A República de Georges, 1870-1885" e "Uma Bela Família Francesa, 1892-1970" são os títulos das partes que organizam a biografia do empreendimento de uma família cujo sucesso e as intempéries estão relacionados ao regime político da França.
"Louis Vuitton: Uma Saga" é o primeiro livro de Stéphanie Bonvicini publicado no Brasil. É uma pesquisa bem feita e consistente, com consulta às fontes primárias. Há entrevistas, diários e livros de memória escritos pelos homens da família Vuitton; arquivos documentais, como certidões de casamento, nascimento e óbito; catálogos comerciais; revistas e jornais; pinturas e fotografias, e também romances e outros tipos de obras literárias.
A riqueza e o luxo do segundo império francês são o pano de fundo da consolidação da marca Louis Vuitton. A cidade que se modifica sob o comando de Georges Haussmann não tem nada de pacificada, é um caldeirão em ebulição, mas em paralelo a vida de Louis vai ganhando os contornos da sua trajetória de sucesso.
Acompanhamos personagens históricos interessantes, sendo que alguns deles foram ilustres clientes de Louis Vuitton, como o casal imperial Luís Napoleão Bonaparte e María Eugenia de Guzmán e Charles Garnier, o arquiteto da Ópera de Paris.
É uma leitura fácil e agradável, apesar de o texto, às vezes, ser um bocado monótono e esquemático. Mas, com o passar das décadas, a sucessão de acontecimentos históricos a que a vida de Louis Vuitton e da marca criada por ele estão ligados acaba ganhando sabor.
O montante das informações cria um grande mosaico de fatos. Há os mais expressivos, como a ascensão e a queda do segundo império francês, a guerra franco-prussiana, as duas guerras mundiais ou a chegada ao poder do Front Populaire, em 1936.
Mas há também os prosaicos e curiosos, mas não menos importantes, como as exposições universais, o metrô a cavalo ou a inserção do cartaz na paisagem urbana —a marca Louis Vuitton foi uma das primeiras, entre os comerciantes de luxo, a fazer publicidade, tanto em revistas como nos cartazes com texto e imagem.
É possível acompanhar também a história da colonização francesa a partir de meados do século 19. "Louis Vuitton desde sempre se interessa pelos movimentos coloniais, para ele uma importante fonte de rendimentos", diz o livro.
Fica evidente como são indissociáveis o desenvolvimento das estradas de ferro e das práticas de viagem de trem, de navio e de avião; a consequente alteração nos costumes e hábitos luxuosos da aristocracia e da alta burguesia, obcecadas por distinção e exclusividade; novos hábitos de lazer e a noção de férias; e o sucesso dos produtos oferecidos por Louis Vuitton.
Sem a consolidação do turismo como uma prática distintiva das classes ricas o negócio não teria prosperado. O refinamento vinculado ao desenvolvimento tecnológico é a essência dos produtos da casa Vuitton.
Uma espécie de luxo patriótico francês, aliado a consumo, dinheiro, poder, exclusividade, política, aristocracia e burguesia financeira, da qual a própria família Vuitton fez parte, compõem a complexa teia de relações que sustentam a narrativa da biografia da "marca mais cobiçada e imitada de todos os tempos", declara a orelha do livro.
As lojas de departamento francesas, como Le Bon Marché e Le Printemps, têm papel de destaque, apesar de se destinarem a um público diferente daquele que Louis desejava atingir. Serviram como modelos de negócios importantes para o artesão, numa época de mudanças rápidas e significativas nos modos de produção e consumo.
Vale saudar a tradução de uma obra que, se não é de história da moda, tem no desenvolvimento da moda francesa e da alta-costura um dos pilares de sua narrativa. Não se pode pensar o acondicionamento de roupas sem os pacotes e as malas propícios ao vestuário de luxo. Louis foi próximo do inglês Charles Frederick Worth, tido como o inventor da alta-costura.
Durante décadas, Vuitton e Worth trocaram informações sobre as evoluções da moda, os tecidos, o transporte de objetos e roupas e a relação entre vestuário, bagagem e conforto, o que permitiu "ao fabricante de malas antecipar e propor à sua clientela malas cada vez mais práticas e adaptadas a seus guarda-roupas". Em 1914, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, é inaugurada a Louis Vuitton no número 70 da avenida Champs-Élysées, "a maior loja de artigos de viagem do mundo".
As intrigas familiares não têm relevo na obra, mas a autora não deixa de mencionar que os irmãos Claude e Henry, filhos de Gaston (neto de Louis), se detestavam. Desentendimento provocado por atitudes políticas contrárias. Henry Vuitton teve contato íntimo com o coronel Bonhomme, homem de confiança do marechal Pétain, presidente colaboracionista durante a ocupação nazista da França na Segunda Guerra Mundial.
O envolvimento de marcas de luxo francesas com os alemães durante a ocupação de Paris não é novidade. Mas, segundo a autora, "os Vuitton não são apenas protegidos de uma catástrofe econômica depois de uma debandada militar: eles criaram uma atividade e montaram uma fábrica especificamente para o regime da colaboração".
Os elos de parte da família –e dos negócios– Vuitton com o regime de Vichy, a França ocupada pelos nazistas, é tão grave que a cena de abertura do livro é um dos encontros de Henry com o coronel Bonhomme, ocorrido em 18 de março de 1942.
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