Bienal de São Paulo aposta na arte como cura espiritual para as mazelas do mundo

Com 1.100 obras de 121 participantes, maior exposição do país tem predomínio de artistas não brancos e alto teor religioso

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Ibrahim

Detalhe de montagem da instalação 'Parlamento de Fantasmas', de Ibrahim Mahama Cortesia do artista

São Paulo

No início da década de 1960, Stella do Patrocínio foi abordada por uma viatura policial nas ruas do bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, e levada à força para um hospital psiquiátrico. Negra, pobre e com um diagnóstico de esquizofrenia, a ex-doméstica passou a viver como interna, situação na qual ficou pelas três décadas seguintes, até morrer, classificada como indigente, dentro do hospício.

'Autorretrato', 1987, guache sobre papel de Ubirajara Ferreira Braga
'Autorretrato', obra de 1987, guache sobre papel de Ubirajara Ferreira Braga - Everton Ballardin

Durante seu tempo na Colônia Juliano Moreira, entre injeções, remédios e eletrochoques, Patrocínio participou de atividades nas quais era estimulada a falar. Seus discursos, conhecidos como falatórios, tinham alta densidade poética —tanto que mais tarde foram transformados em um livro de poemas— e podem ser entendidos como dispositivos criados por ela para lidar com a situação de cárcere em que se encontrava.

A partir da quarta-feira da semana que vem, o público vai poder ouvir cerca de uma hora e 40 minutos das falas de Patrocínio, transformadas numa obra sonora na Bienal de São Paulo, a maior exposição de arte do país. Escutar uma mulher considerada louca pelo sistema é uma maneira de entender um conceito central da mostra, o da produção artística como forma de resistência às durezas do mundo.

São "estratégias de resposta, gingados estéticos que uma série de artistas fazem diante dos impossíveis que condicionam seus espaços de origem e pertencimento", afirma Hélio Menezes, um dos organizadores da mostra, que chega agora à sua 35ª edição.

Junto com Patrocínio, estão expostas dezenas de pinturas de outros dois artistas que produziram em manicômios, Ubirajara Ferreira Braga e Aurora Cursino, e também bordados de Arthur Bispo do Rosário, o artista-paciente por excelência.

Se a fala pode curar ou ajudar a lidar com dificuldades, na medida em que põe palavras onde antes não havia, confabular em conjunto com os outros "talvez seja uma das necessidades mais prementes do nosso tempo", acrescenta Menezes. Segundo ele, o encontro é outro ponto fundamental da mostra.

Não por acaso, a primeira obra que o visitante vê ao entrar no pavilhão do parque Ibirapuera onde o evento acontece é uma pequena arquibancada, proposta por Ibrahim Mahama.

Chamado "Parlamento de Fantasmas", o trabalho do artista de Gana —uma versão do qual é apresentado agora na Bienal de Arquitetura de Veneza— vai receber conversas, falas, performances, oficinas de dança e até apresentações de "ballroom", um tipo de dança negra e LGBTQIA+ surgida no bairro do Harlem, em Nova York.

A arte do encontro se dará também no mezanino do térreo, onde estará a obra do coletivo Ocupação 9 de Julho, e no segundo pavimento, num espaço de assembleia conhecido como "assays" desenvolvido pelos artistas marroquinos Nadir Bouhmouch e Soumeya Ait Ahmed.

Corredor com luzes rosa e azul
Obra 'Pink-Blue', de Kapwani Kiwanga, na exposição 'The Artist Is Present', em Xangai, em 2018; uma versão desse trabalho está na 35ª Bienal de São Paulo - Divulgação

Encontrar pontos em comum nas obras de arte expostas ajuda o visitante a lidar com a complexidade de uma mostra com 1.100 trabalhos de 121 participantes e título enigmático, "Coreografias do Impossível".

Dos selecionados, há uma presença expressiva de artistas negros e indígenas, no que se anuncia como a Bienal de São Paulo com o maior número de não brancos até hoje, acentuando uma tendência que já se desenhava nas edições anteriores do evento. É também uma mostra com número expressivo de artistas latinos e africanos.

Esta edição tem outra peculiaridade —um grande número de obras que lidam com espiritualidade ou entidades de religiões de matriz africana. Um teor etéreo, do que não pode ser comprovado, perpassa toda a mostra, às vezes de forma explícita nos trabalhos e às vezes presente só no discurso dos artistas. Para a fruição do que está exposto, facilita deixar de lado o pensamento cético.

Nessa chave estão alguns trabalhos que ganharam bastante destaque no espaço expositivo, como a floresta de bambus de Ayrson Heráclito e Tiganá Santana, uma instalação imersiva de percurso labiríntico na qual o visitante entra e se perde.

Heráclito conta que a ideia da obra, encomendada pela mostra, não é reproduzir no pavilhão uma mata do mundo real, mas sim criar "um espaço de encantados, de seres desencarnados e divindades". Segundo ele, o trabalho é uma homenagem aos guardiões das florestas, como a Mãe Stella de Oxóssi e o ativista Chico Mendes, que aparecem em imagens em projeções.

Ayrson Heráclito, à esquerda, e Tiganá Santana, em meio à floresta
Ayrson Heráclito, à esquerda, e Tiganá Santana, em meio à floresta - Leo Monteiro/Fundação Bienal de São Paulo

Outra obra que funciona num contexto espiritual é a terapia sonora para ajudar na cura do câncer, proposta por Guadalupe Maravilla, um nome quente no circuito, que expôs no ano passado no Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA. Sobrevivente de um câncer de cólon agressivo, o artista cria grandes esculturas com elementos orgânicos como madeira, penas, ossos e dentes, dentro das quais coloca gongos.

Ao ser tocado, o gongo ressoa, gerando vibrações que teriam o poder de restaurar o equilíbrio do corpo e liberar toxinas, o que por sua vez reduziria a dor residual da radiação e de outros procedimentos usados contra o câncer, de acordo com um perfil do artista publicado pelo jornal New York Times.

Essa prática de cura foi resgatada por Maravilla de antigos rituais indígenas da América Central. A obra será ativada em algumas sessões durante a Bienal, com a participação de migrantes enfermos.

O público-alvo foi um pedido do próprio artista, dado que Maravilla tem uma história marcada pelo deslocamento. Aos oito anos de idade, ele fugiu da guerra civil em El Salvador, seu país natal, e percorreu o caminho de milhares de quilômetros até a fronteira do México com os Estados Unidos, onde cruzou a divisa na condição de imigrante sem documento.

Décadas mais tarde, Maravilla se tornou um nome central da arte contemporânea, num percurso de vida que, como sugere o título da mostra, é uma coreografia do impossível.

35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do Impossível

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