Após anos de apelos ignorados e solicitações sem resposta, finalmente estavam sendo finalizados acordos para que alguns dos tesouros africanos mais prezados fossem devolvidos ao seu continente de origem.
O Instituto Smithsonian, o Metropolitan e o governo alemão anunciaram que iam devolver dezenas de esculturas, placas e ornamentos, conhecidos como os Bronzes de Benin, saqueados por militares britânicos em 1897 da Cidade de Benin, situada na atual Nigéria, mas que na época era o centro de um reino. Havia planos para um novo museu projetado pelo arquiteto britânico-ganense David Adjaye para exibir e proteger os tesouros devolvidos.
Mas o plano atolou desde que o presidente nigeriano em final de mandato anunciou que havia transferido a propriedade dos objetos saqueados para um descendente direto do governante do qual foram roubados. Num momento em que museus em todo o mundo estudam o que fazer com artefatos de seus acervos cuja propriedade é disputada, a nova informação destacou a complexidade potencial dos esforços de restituição.
A confusão começou em março, quando o presidente nigeriano Muhammadu Buhari –que deixou o cargo em 29 de maio— emitiu declaração entregando os artefatos, que incluem placas de bronze decoradas, estátuas esculpidas em marfim e máscaras cerimoniais, a Ewuare 2º, o atual obá, ou rei cerimonial, de Benin. Consta na declaração que quaisquer artefatos devolvidos "podem ser conservados no palácio do obá" ou em qualquer outro espaço que este considerar seguro.
O anúncio, que só veio à luz recentemente fora da Nigéria, é visto amplamente como um esforço para encerrar uma disputa que se arrasta há muito tempo para decidir quem é o dono de direito dos bronzes: o governo da Nigéria, sua Comissão Nacional de Museus e Monumentos ou o próprio obá.
Representantes da família real disseram que o obá quer ver os bronzes expostos em museus da Nigéria e pelo mundo afora, mas a entrega dos tesouros a mãos de particulares gerou ansiedade em alguns museus que estão negociando a devolução à Nigéria de artefatos saqueados.
No mês passado, a Universidade de Cambridge adiou uma cerimônia para devolver a propriedade de 116 bronzes. Um porta-voz disse que a universidade "ainda está em discussões com todas as partes".
Mas outros no setor dos museus opinaram que as instituições ocidentais não devem intervir na discussão. "Não é da conta do Smithsonian" o que vai acontecer com os bronzes de agora em diante, disse Linda St. Thomas, uma porta-voz do museu, que no ano passado entregou 29 bronzes à comissão de museus nigeriana. A Nigéria pode "doá-los, vendê-los, expô-los", ela disse. "Em outras palavras, pode fazer o que bem entender."
Hermann Parzinger, presidente do organismo que supervisiona os maiores museus de Berlim financiados com verbas públicas, onde ainda estão centenas de bronzes, disse em release à imprensa que é urgente esclarecer quem é o dono dos artefatos e se eles ainda serão expostos na Nigéria.
No ano passado, o governo alemão assinou um acordo com sua contraparte nigeriana para transferir à Nigéria a propriedade de mais de mil bronzes saqueados. Em um gesto simbólico, o ministro do Exterior alemão viajou à Nigéria em dezembro e entregou os 20 primeiros artefatos, com a previsão de que eles seriam seguidos por outros.
O anúncio de Buhari gerou consternação também fora do mundo dos museus. Legisladores e colunistas de jornais alemães questionaram se o país teria se precipitado ao devolver as coleções de bronzes.
Christiane Schenderlein, a porta-voz cultural do partido de centro-direita União Democrata Cristã, disse que os bronzes são tesouros mundiais que devem ser expostos ao público. Para ela, a decisão de entregá-los a um indivíduo, sem a garantia de que serão expostos, é "um desastre".
A expectativa era que a maioria dos bronzes fosse cedida como empréstimo a um fundo que reuniria representantes do obá e de governos regionais e nacional. Esse fundo pretendia criar uma nova instituição, que se chamaria Museu Edo de Arte da África Ocidental, para abrigar muitos dos bronzes.
Em novembro de 2020, Adjaye, o arquiteto, apresentou um projeto do museu, dizendo esperar construí-lo em cinco anos. Alguns meses mais tarde, em maio de 2021, a comissão de museus da Nigéria autorizou a fundação a negociar com insituições ocidentais e armazenar quaisquer artefatos devolvidos.
Mas o plano começou a se desfazer em pouco tempo. Nesse mesmo mês, em comunicado enviado à imprensa, o obá disse que deveria ser o único destinatário dos tesouros e que quem estivesse trabalhando com a fundação seria "um inimigo".
Para superar a oposição do obá, autoridades nigerianas desenvolveram outras opções. Em março deste ano o diretor geral da comissão de museus, Abba Tijani, disse em um encontro de representantes de museus ocidentais que a Nigéria construiria um museu real na Cidade do Benin, em nome do obá e de sua corte, para expor muitos dos artefatos devolvidos.
Tijani apresentou uma visão do museu, mas, segundo duas pessoas que estavam presentes à reunião, não mostrou planos concretos. Algumas semanas mais tarde, o presidente Buhari fez seu anúncio inesperado.
Em entrevista dada pelo telefone, Tijani disse que contestaria a declaração do presidente. Ele não quis explicar as bases legais da disputa, mas disse que o documento em três páginas autorizando a transferência dos bronzes continha erros.
Especialistas legais nigerianos disseram que Tijani ou terá que ir à Justiça para forçar uma mudança dos planos ou torcer para que o novo presidente nigeriano, Bola Tinubu, que assumiu em 29 de maio, recorra a uma declaração para passar por cima de seu predecessor.
Na Cidade do Benin, o clima é de irritação com a discussão. O príncipe Aghatise Erediauwa, irmão mais jovem do obá e representante da corte real para questões relativas aos bronzes, disse em entrevista telefônica que qualquer funcionário ocidental ou nigeriano que critique o direito do obá de ser dono dos bronzes estará "criando confusão intencionalmente".
Erediauwa disse que o obá sempre deixou claros seus planos para os bronzes devolvidos: eles serão expostos em museus na Nigéria e pelo mundo afora, onde servirão como "embaixadores" de seu reino e sua cultura. Mas, disse o príncipe, o obá também deixou claro que quer que seu direito de proprietário seja respeitado.
Victor Ehikhamenor, artista que integra o conselho de direção da fundação que está construindo o Museu Edo, disse que, se os bronzes forem expostos principalmente em outros espaços, a instituição provavelmente vai mudar de rumo, passando a incluir mais arte contemporânea.
Ele disse ainda que facções diferentes na Nigéria podem estar debatendo onde mais os bronzes podem ser expostos, mas opinou que o Ocidente não deve tentar intervir nessas questões. "Cuidem de seus problemas e nós cuidaremos dos nossos", recomendou.
Tradução Clara Allain
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