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'O Dia de um Oprítchnik' revela a Rússia de Putin como um país perdido

Livro do russo Vladímir Sorókin traz hologramas que coabitam com oficiais medievais de Ivã, o Terrível, em trama de 2027

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Raquel Toledo

O Dia de um Oprítchnik

  • Preço R$ 65 (240 págs.)
  • Autoria Vladímir Sorókin
  • Editora 34
  • Tradutora Arlete Cavaliere

Leitura fundamental para penetrar o universo secreto da Rússia contemporânea, "O Dia de um Oprítchnik" nos põe diante de uma longa linhagem de escritores insubordinados que usaram a literatura paródica para cutucar o governo russo, como fez Nikolai Gógol no século 19, e Mikhail Bulgákov, no 20.

O autor, Vladímir Sorókin, é um dos proeminentes nomes da geração contemporânea e, se isso ainda não estava claro para o leitor brasileiro após "Dostoiévski-Trip", que rendeu ao escritor o primeiro convite a um autor russo para a Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, já não há mais dúvidas da força da pós-modernidade russa após a leitura de "O Dia de um Oprítchnik", na tradução criativa de Arlete Cavaliere.

O escritor russo Vladímir Sorókin, na Festa Literária Internacional de Paraty de 2014
O escritor russo Vladímir Sorókin, na Festa Literária Internacional de Paraty de 2014 - Raquel Cunha/Folhapress

No romance, Andrei Komiaga, oficial russo, acorda em sua elegante casa, vira um cálice de vodca para espantar a ressaca, se alimenta, dá ordens aos funcionários do lar e sai para trabalhar apresentando ao leitor uma Moscou moderníssima, rica em tecnologia e organizada, capital de um país que se mantém apartado do Ocidente através de um grande muro.

Komiaga é um oprítchnik, um comandante responsável por manter a ordem na nova Rússia, de quem acompanhamos em seus caprichos e rituais desde a hora que desperta até voltar para a cama.

Alguns procedimentos estéticos presentes nesse romance de 2006, publicado agora pela editora 34 com tradução e posfácio de Cavaliere, exemplificam os caminhos que trilham os contemporâneos. Um deles é o constante diálogo com a tradição literária, presente já no título do romance, que se passa em uma segunda-feira de trabalho de um oprítchnik, assim como fez Soljenitsín em "Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch".

Mas se o Nobel de literatura mostrava em seu romance os absurdos dos gulags, Sorókin olha para o futuro, e aqui está outro procedimento literário contemporâneo —a literatura soviética, em especial a que seguia os preceitos stalinistas, rezava a cartilha do realismo, aos contemporâneos interessa mais bagunçar as fronteiras entre o real e o fantástico.

Assim, num romance levemente futurista –a narrativa se passa em 2027– convivem o passado e o futuro. Oprítchniké o título dado ao oficial que integrava a Oprítchnina, violenta guarda de Ivã, o Terrível, o primeiro soberano de toda a Rússia, ainda no século 16.

Dessa forma, na Rússia de Sorókin, hologramas coabitam com oficiais medievais, ambos a serviço daquele que assumiu o poder após desventuras políticas que desestabilizaram a Rússia desde o fim da União Soviética.

Komiaga é um protagonista desagradável que expressa sua subjetividade por meio da violência, do apetite sexual desenfreado e de seu interesse por entorpecentes. No discurso do personagem, há apenas espaço para a valorização da autocracia, da nação e da fé ortodoxa, que formam uma espécie de trindade da sociedade russa pós-soviética, inclusive fora da ficção, pois resiste na figura ambígua do presidente Vladimir Putin.

E cada um desses três eixos é golpeado, ao menos no romance de Sorókin, através das atitudes de Komiaga e daqueles que o cercam. A moralidade distorcida é um traço coletivo, que culmina na figura do Soberano, a quem interessa apenas manter distância do Ocidente, paz com a China e os estrangeiros longe da Rússia, bem como russos longe do estrangeiro.

Uma Rússia cada vez mais isolada em seus costumes reflete o autoritarismo e a violência que ultrapassam os limites da ficção e podem ser notados já no governo de Putin, que une em si o amálgama retratado por Sorókin —a Rússia medieval, soviética e capitalista em uma espécie de paz impossível.

Quando aponta para um futuro próximo, Sorókin descortina o que espera dos russos sob o governo de Putin, a quem se opõe ferrenhamente e, para o qual, não acredita haver salvação, mas apenas uma repetição sangrenta dos erros do passado que condena a Rússia a ser, como disse o próprio autor em entrevista, um país sem presente ao qual cabe o constante equilibro entre o que foi e o que um dia pode vir a ser.

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