"O Plantador de Abóboras", de Luís Cardoso, é a primeira obra de um autor do Timor Leste a receber o prêmio Oceanos, embora ele viva em Portugal há tempos.
Em linhas gerais, o romance esboça a história daquele país a partir das memórias de uma mulher vestida de noiva que imagina conversar com um recém-chegado, que toma as suas mãos e pede a ela, misteriosamente, para "semear abóboras".
Nessa conversa imaginária, ela repassa as suas origens, a começar do avô, um militar negro moçambicano que viera ao Timor para lutar a serviço dos senhores portugueses contra os primeiros levantes independentistas.
Passa em seguida à história do pai, que se torna um rico fazendeiro, graças ao plantio do café. A sua grande luta, junto de seu feitor, foi a de manter a posse da terra em meio aos conflitos independentistas e às invasões japonesa, em 1942, e indonésia, em 1975. Embora o livro não mencione datas ou números, esta última resultou num genocídio que pode ter chegado a 100 mil mortes.
Da mãe, conta menos. Diz que foi soldadeira e espiã na fronteira terrestre da ilha, e que, impossibilitada de manter a filha consigo, entregou a criança a uma tia que a repassou ao fazendeiro de café, que a criou como filha.
Da própria vida, a mulher destaca o desditoso caso de amor com um noivo, ex-seminarista como o próprio Cardoso, que é humilhado pelo pai dela e se vai dali. O seu lugar é ocupado por um jovem líder revolucionário que toma posse da fazenda e também dela, se julgando de tudo perdoado, em nome de sua luta pela pátria livre.
Na caça dele, chegam soldados indonésios que não o encontram, mas acusam a moça de ser cúmplice do guerrilheiro, punindo a mulher com seguidos estupros. Nada disso a demove de esperar pelo noivo com o vestido do casamento, nessas alturas já manchado do sangue do pai que vem a ser assassinado.
Ao fim, não é surpresa que o suposto estranho que toma as suas mãos adquira paulatinamente as formas desse noivo distante que finalmente retorna.
Em termos gerais, a narrativa memorialista é fragmentária e reiterativa, alinhavando episódios esparsos, levemente absurdos, que vão criando alusões simbólicas e mesmo certo clima mágico, em clara oposição à ideia de contar uma história de maneira realista e de tentar compreender a narrativa a partir de atos e fatos.
O tom predominante é cerimonioso, reservando algum espaço para o humor; trechos da narrativa funcionam como motes poéticos e são repetidos muitas vezes; palavras nativas são empregadas de forma acumulativa e sonora, mais do que semântica; há ainda farto uso de parênteses, o que remete à maneira de contar para si mesmo de Lobo Antunes.
Nas evocações da noiva, está claro o seu desinteresse por descobrir o assassino do pai, o que acentua o viés não revanchista do livro. Ao contrário, é pacifista, conciliador, e visa superar tanto as discussões ideológicas que opuseram os grupos revolucionários entre si quanto a economia imediatista do lucro suposta na extração do petróleo e na monocultura do café.
Por meio da metáfora da semeadura da abóbora, o romance parece propor novas bases agrárias, sustentáveis, para o desenvolvimento do país.
E se politicamente o livro é conciliador, faltou acrescentar que concilia também a literatura ocidental e a asiática, além da criação popular, erudita e a midiática, ao retomar muitas vezes a figura humilde e histriônica de Sancho Pança; a imperturbabilidade de Sun Tzu e, enfim, o sentimentalismo fatalista de Doris Day a cantar "Que Sera, Sera".
Em síntese, diria que "O Plantador de Abóboras" opera de modo a substituir a história pela memória; a ideologia pela mitologia; a ação narrativa pela intertextualidade simbólica. Tudo isso compõe o noivado que está prometido no romance.
É, pois, um tipo de obra que evoca o passado e, ao mesmo tempo, tem pressa em deixar tudo para trás com as suas invasões estrangeiras, massacres e lutas sectárias. Arrisca, porém, a produzir uma folclorização da história em construção do Timor Leste, muito aquém da grandeza trágica do país.
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