Descrição de chapéu

'A Família Medeiros' de Júlia Lopes de Almeida retrata a barbárie

Livro, que faz 130 anos, não é de tirar o chapéu, mas acerta ao opor liberdade de mulheres e escravos à violência das elites

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Angela Alonso

Professora titular do Departamento de Sociologia da USP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)

A Família Medeiros

  • Preço R$ 92,90 (385 págs.); R$ 65,90 (ebook)
  • Autoria Júlia Lopes de Almeida
  • Editora Carambaia

Era o começo da República, mas parece ontem. Tinha epidemia e militar na Presidência, juras de amor à Constituição e arma em punho. Tinha propostas de compensar as vítimas da escravidão e dar direitos às mulheres, e tinha quem não via cabimento em nada disso.

Os tempos também mudam. Uma diferença é de adereço. Ninguém andava por aí de máscara, mas não se saía de casa sem chapéu. A moda era um miúdo, mal cobrindo a fronte das mulheres distintas. A Gazeta de Notícias, em 16 de outubro de 1891, resumiu a opinião masculina média sobre a cabeça feminina —"aquilo é a metade de um chapéu sobre a quarta parte de um cérebro".

mulher idosa branca
A escritora Júlia Lopes de Almeida, autora de 'A Família Medeiros', em retrato sem data - Fundo Correio da Manhã/ Arquivo Nacional/Reprodução

O jornal não viu incoerência em dar o "chiste" na data em que estreava o folhetim de Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida. Era "A Família Medeiros". Na base de um capítulo ao dia no rodapé, foi até o fim do ano e, em janeiro, estava editado, pela Companhia Editora Fluminense, acrescido de notas explicativas dos costumes paulistas. Quem anotava bem os conhecia. Almeida crescera em Campinas, ponto de negócios do café paulista. Nem por isso era provinciana. Escrevia em folhas do Rio de Janeiro e viveu em Lisboa, donde voltou nas vésperas da Abolição.

Fez carreira de dar inveja a homens de cartola, com romances, contos, crônicas, teatro. Virou o século temperando a panelinha machadiana que cozinhava a Academia Brasileira de Letras. Mas ficou sem cadeira. Não convinha saia em mesa imortal. Achou comensais noutra parte, na Legião da Mulher Brasileira e na Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher. Três anos antes de morrer, em 1931, foi oradora no Segundo Congresso Internacional Feminista, no Rio.

Este perfil explica a reedição do romance. É parte da voga de reparações históricas editoriais, que privilegiam a identidade de quem escreve. Mas a relevância da pessoa não garante a qualidade da obra. Do ponto de vista da fatura literária, o livro não é de tirar o chapéu.

A Gazeta o viu como "romance de costumes paulistas", de "bom gosto e elevado critério", e tratou a autora, prata da casa, como grande dama. Em O País, o antiaristocratismo republicano prevaleceu. Um resenhista, em janeiro de 1892, tratou a escritora de saias "como se trata um camarada" de calças —sem pena. Achou os protagonistas "falsos" e viu na armação um repeteco de Júlio Diniz. De fato, a novela anda mal por esses lados e abraça convenções realistas sem ter se livrado das românticas.

O mérito da família Medeiros não é de forma, mas de fundo. É registro vívido das maneiras —e falta delas— de uma família cafeicultora paulista. Há o cotidiano da fazenda, com roças e comidas, doenças e festejos, e o esmiuçamento da lógica escravista, com feitores, capitães do mato, senzalas, quilombos, revoltas.

A novela protesta contra o patriarcalismo, que traçava o destino de moços e sobretudo de moças —"as mulheres devem ser escolhidas como os porcos". O enredo contrapõe o progresso, a ciência e a liberdade —de mulheres e escravos— ao atraso e à violência das famílias senhoriais, aferradas ao osso escravista, mesmo assoreadas pela campanha abolicionista.

O conflito de costumes entre duas gerações da elite social corta o livro de fio a pavio, em par com outro, em torno da escravidão. A autora estiliza eventos decisivos para a abolição. Um foi a fuga coletiva de escravos, em outubro de 1887, que cruzou cidades desde Itu, no interior paulista, rumo a Santos, no litoral, onde abolicionistas os aguardavam. Na serra do Mar, a tropa disparou sobre homens e mulheres, velhos e crianças. O caso levou o Exército, envergonhado da matança, a desertar o escravismo e a monarquia.

O outro episódio é o linchamento do delegado Joaquim Firmino, em Penha do Rio do Peixe, no interior paulista, em fevereiro de 1888. Almeida o transferiu para Sertãozinho e converteu o personagem em juiz. Mas realidade e ficção coincidem na brutalidade —"espancaram, mutilaram, estrangularam a vítima".

É na descrição da barbárie que o livro, que aniversaria 130 anos, cresce. Talvez porque nisso presente e passado coincidem, com as violência racial e de gênero ainda bordando o cotidiano.

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