Quando Stephen King escreveu "Misery", há 35 anos, ele já era um autor de sucesso. Entretanto, a rapidez com que ele se tornou uma celebridade, a profusão de fãs, mais a intensidade do sistema mercantil da literatura —que faria dele um dos autores mais vendidos no planeta— também o angustiavam. Em "Misery", isso aparece simbolizado na forma de um thriller de suspense.
O escritor Paul Sheldon é um fenômeno de vendas, seus livros, como é a tônica de muitos best-sellers, criam tramas que aprisionam o leitor num tipo de intensa conexão hipnótica com a narrativa. Contudo, no suspense de Stephen King, Sheldon é que é aprisionado por uma fã, a enfermeira Annie Wilkes.
A admiradora, totalmente enfeitiçada pela obra do escritor, tomada por aquele universo moldado para capturar sua atenção, faz dele um prisioneiro e o força a escrever um novo livro, corrigindo o rumo inesperado de seu último romance.
A coação da enfermeira, que obriga o escritor a produzir com uma arma na cabeça, sob efeito de potentes analgésicos e com as pernas inutilizadas, ou seja, sem nenhuma autonomia criativa, é fruto da psicopatia da personagem, mas é também uma metáfora grotesca de como funciona o sistema produtivo da indústria editorial.
O autor que consegue o feito de capturar milhões de fãs não deixa também de se tornar cativo deles, obrigado a reproduzir eternamente a fórmula que os encantou e que, é claro, gerou receitas milionárias —na obra de Stephen King, a agente de Paul Sheldon não é apenas uma personagem tangencial, ela é quase um duplo longínquo da enfermeira Annie.
Na montagem teatral protagonizada por Mel Lisboa e Marcello Airoldi tais aspectos reflexivos e simbólicos do suspense são muito bem trabalhados.
A encenação de Eric Lenate põe em funcionamento um tipo de máquina cenográfica —um palco giratório que é movimentado, à vista do público, por uma equipe de contrarregras. Assistimos, simultaneamente, ao desenvolvimento do suspense e ao movimento das engrenagens da maquinaria teatral.
Tal sintaxe da cena ecoa um dos temas da obra, que é a construção de narrativas, e também libera o público para a reflexão crítica. Sem deixar de lado a trama eletrizante, a montagem não se rende a ela e abre espaço para o pensamento crítico.
Em paralelo, contudo, a adaptação brasileira é bem menos eficaz em sua vontade de corrigir supostos preconceitos da trama original e do roteiro cinematográfico do filme, que estreou em 1990 e que rendeu um Oscar à atriz Kathy Bates.
Para retificar o que julgam ser uma representação rebaixada da mulher, aparentemente reduzida à ideia de uma psicopata mal amada, Mel Lisboa tenta propor uma Annie Wilkes mais dúbia, enfatizando sua solidão e ingenuidade. Cria, para isso, outro estereótipo.
Forçando um sotaque caricatural, a atriz faz da enfermeira uma jovem interiorana, infantil e simplória, vítima das circunstâncias em que vive —com bem menos nuances psicológicas e sem a forte determinação do moralismo religioso americano que a personagem original possui.
O empenho em corrigir a obra à luz de demandas contemporâneas soa como um tipo de atualização mal acabada do discurso. Um alinhamento frágil ao debate atual.
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