É curioso que o disco mais surpreendente desta temporada na MPB apareça pelas mãos de um artista consagrado e com uma assinatura personalíssima em tudo que faz. "A Desordem dos Templários" soa descolado de tudo o que ė feito hoje, e isso é muito bom.
Depois de 45 anos de uma carreira de enorme sucesso, o público pensou que já sabia o que esperar de Guilherme Arantes –canções pop impecáveis, baladas de amor maduro com letras muito acima da média e melodias que grudam no ouvido.
Tudo isso aparece em "A Desordem dos Templários", mas não forma a essência do disco mais ambicioso do cantor e compositor. É uma obra conceitual, e as circunstâncias de sua criação são determinantes para o resultado.
Eis um curto resumo. Em 2019, o paulistano Guilherme Arantes deixou seu aconchego na Bahia para passar um tempo com a mulher em Ávila, cidade de origens medievais na Espanha. O plano era ficar algum tempo por lá, estudando música barroca.
Primeiro, veio a pandemia. Depois, o artista teve um sério problema na coluna cervical, em muitos meses de isolamento. Com a inspiração surgida entre os muros dos castelos medievais, ele começou a compor e veio a ideia do álbum, que gravou ali, com colaboração remota de músicos no Brasil.
Para os fãs de rock progressivo, o que nasceu dessa imersão é um conjunto de músicas que reatam Guilherme Arantes ao gênero. Antes de iniciar sua incrível carreira solo, com o estouro de “Meu Mundo e Nada Mais” em 1976, ele fez parte da banda Moto Perpétuo.
O grupo era uma espécie de mistura de Yes e King Crimson com uma MPB um tanto roqueira, como a produzida pelos mineiros do Clube da Esquina. O único álbum gravado pelo Moto Perpétuo, que leva o nome da banda, hoje é disputado a tapas nas lojas de vinil usado.
Durante a longa carreira do cantor, com mais de 20 álbuns, muitos fãs discutiram quando ele iria retomar esse caminho do prog, se é que isso se realizaria um dia. Para esses, o disco é quase um sonho realizado. As músicas mais longas se dividem em partes distintas, como suítes, uma característica do rock progressivo na aproximação com a música clássica.
Os ecos medievais são inúmeros, principalmente no uso dos violões. Mesmo aqueles que não têm contato com a produção da música barroca vão reconhecer facilmente o tipo de som que se escuta nos filmes que enfocam a Idade Média. Nas letras, um tanto de narrativas épicas e o tema das cruzadas, que o compositor costura muito bem com os descaminhos do mundo atual.
Se Guilherme Arantes tivesse a ideia de gravar algo parecido há alguns anos, talvez construísse uma obra mais convencional de rock progressivo. Mas, agora, depois de tanto tempo refinando seu estilo de compor músicas agradáveis a inúmeros tipos de público, parece ser impossível desassociar seu dom de cantar joias raras do pop com o lado roqueiro.
Entre as peças mais fiéis a esse progressivo peculiar estão “El Rastro”, “Nenhum Sinal do Sol” e a complexa faixa que dá título ao disco. Mas os momentos mais irresistíveis dessa nova safra são justamente as canções que misturam esse mote medieval com outros temas.
“Toda Aflição do Mundo” dedica sua letra extensa a conexões entre as aventuras dos tempos antigos e as agruras da atualidade. Talvez uma das melhores letras de Guilherme Arantes, versos que se sustentam até como um poderoso poema, se fosse retirado o acompanhamento musical.
“Nossa Imensidão a Dois”e “A Razão Maior” —outra letra muito inspirada— são temas de amor em que as referências ao erudito são ótimas coadjuvantes para Guilherme Arantes exercitar seu ofício de romantismo, pedra fundamental de sua obra pop.
Três canções têm suas particularidades. “A Cordilheira”, letra carregada de esperança no mundo difícil, aparece também numa verão em inglês, “Across the Abyss”. Arantes faz uma delicada homenagem à mãe, que morreu há pouco tempo, em “Estrela-Mãe”.
Para completar, e cumprindo o papel de “oficializar” o resgate do progressivo na obra do artista, “Kyrie” é uma faixa instrumental para agradar a todos os amantes do prog, por mais ranzinzas que possam ser.
Ao ouvir o álbum, fica claro que Guilherme Arantes não está nem aí para o mercado. Isso pode ser visto até como uma revanche, já que nas duas últimas décadas suas canções românticas para assobiar na rua não têm tido muito espaço entre esses furacões de sofrência sertaneja e funk pancadão.
Bem-sucedido, muito à vontade com sua carreira aos 68 anos, Guilherme Arantes mostra uma intensidade criativa para satisfazer quem sempre acompanhou seu trabalho. Ou, quem sabe, ganhar novos fãs jovens entre uma moçadinha insistente que venera o rock progressivo dos anos 1970.
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