Nuno Ramos encena toda a violência de 'Os Desastres da Guerra' de Goya nos palcos

Apresentação continua o projeto 'A Extinção É para Sempre', que mistura linguagens e articula o inexprimível

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São Paulo

Fuzilamentos, membros decepados e cadáveres amontoados. Um corpo ainda vivo arrastado por uma corda.

São cenas de “Os Desastres da Guerra”, série de gravuras do pintor espanhol Francisco Goya realizada entre 1810 e 1814. Retrata o embate entre o Exército francês e a população espanhola, que resiste à intervenção militar de Napoleão em seu país.

No palco do teatro do Sesc Vila Mariana, em 2021, as imagens ganham volume e voz no corpo de dez performers, que recriam as cenas do pintor espanhol ao vivo e em cores. “Os Desastres da Guerra” são inspiração e nome do terceiro episódio de "A Extinção É para Sempre", projeto do artista Nuno Ramos realizado pelo Sesc com apoio do Goethe-Institut.

Atores, bailarinos e músicos circulam ao redor de um morro de feno, congelam como pinturas vivas as gravuras de Goya, desmancham o monte de palha, pausam a cena. O que o público vai ver já está dito por uma descrição antecipada, “avant la scène”, feita por um performer cego no canto do palco.

A linguagem de cegos entra como nova camada às imagens da guerra civil e ao texto, uma coletânea de depoimentos de sobreviventes de chacinas nacionais –o massacre da favela do Jacarezinho, neste ano, a operação policial na favela da Maré que matou o estudante Marcos Vinícius, em 2018, entrevistas do documentário “À Queima Roupa”, de Theresa Jessouroun, feito em 2014.

Performance 'Os Desastres da Guerra', do artista Nuno Ramos
Performance 'Os Desastres da Guerra', do artista Nuno Ramos - Divulgação

Transportados para o alfabeto tátil, os depoimentos foram transformados em uma partitura musical, executada em cena ao mesmo tempo que os símbolos do sistema de leitura para deficientes visuais são projetados nas três telas que emolduram a caixa preta do palco e lidos pelos atores em tom distorcido —o tempo do braile é duas ou três vezes mais lento do que o da fala.

É um texto estranhamente familiar. Não dá para entender tudo, mas tudo o que é dito se repete à náusea nas reportagens televisas sobre a mais recente chacina cometida no Brasil. A mãe do filho morto, o irmão da vítima, a fratura exposta, a poça de sangue no quarto.

“Foi uma tentativa de dizer o indizível sem ser ridículo. Só distorcendo é possível dar sentido a um texto que precisa da cegueira para ser lido”, afirma Ramos.

Na mistura de linguagens, elementos de artes visuais, teatro, dança, música e literatura criam algo muito próximo de uma ópera para este milênio e este país em que vivemos.

Seria uma tentativa de resposta para aqueles que, segundo Ramos, “odeiam linguagem, só aceitam códigos, não querem nada que seja ambíguo”. Feita em conjunto por “pessoas que estão a fim de jogo”, como ele.

Artista visual, compositor, diretor e escritor, Ramos sempre misturou materiais e linguagens em sua obra, mas é a primeira vez que ele trabalha com dança e, de certa forma, com a experiência coletiva da encenação teatral. Em “Os Desastres da Guerra”, ele divide a direção e a dramaturgia com a coreógrafa e diretora Tarina Quelho e o dramaturgo e escritor Vicente Antunes Ramos, seu filho.

A criação coletiva, a abertura para a comunicação entre linguagens e a necessidade de articular situações inexprimíveis como a violência são características das sete ações, ou episódios, de "A Extinção É para Sempre".

Os dois primeiros, o monumento virtual “Chama” e a performance “Chão-Pão”, podem ser vistos no site do projeto. “Os Desastres da Guerra” será transmitido ao vivo, do teatro do Sesc Vila Mariana, neste fim de semana. Também ficará disponível no site e, posteriormente, deve ser editado no formato de filme.

Todas as ações foram planejadas para ocorrer por um ano, tempo em que a “Chama” do isqueiro Zippo instalado no Sesc Avenida Paulista permanecerá acessa, como um monumento ao luto durante a pandemia. O público é chamado a participar. Quem quiser, pode se inscrever no site do Sesc para transmitir, ao vivo e online, sua própria chama.

A interatividade, as propostas coletivas e as linguagens artísticas embaralhadas, que, na visão de Ramos, lembram um pouco o começo dos anos 1970 e ganham nova força no momento atual, estão na própria estrutura do projeto.

Há um núcleo fixo para a criação dos sete episódios. Além de Ramos e Tarina Quelho, estão na equipe o músico Romulo Fróes e os performers Allyson Amaral, Tenca e Leandro Souza. O elenco de cada um, no entanto, é reorganizado com a participação pontual de nomes como o cineasta Jorge Bodanzky, a escritora Noemi Jaffe e o diretor teatral Antonio Araujo.

Entre outros, eles estão criando com Ramos os próximos episódios. “Iracema”, em que Edna de Cássia, a protagonista de “Iracema – Uma Transa Amazônica”, revisita o filme de 1974; “Monumento”, a reinauguração de uma estátua no centro de São Paulo com textos de escritores lidos por cinco pessoas de diferentes origens sociais; uma atualização da tragédia grega “Antígona” e a encenação da peça que dá nome ao projeto, escrita por Ramos. “A extinção é para sempre. Mesmo”, diz o autor.

OS DESASTRES DA GUERRA

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