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Entenda como Julio Cortázar construiu nos contos a sua maior revolução na literatura

Sai pela primeira vez no Brasil uma edição com todas as narrativas curtas escritas pelo argentino

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Julio Cortázar em retrato de 1981, em Paris

Julio Cortázar em retrato de 1981, em Paris Dani Yako/Clarin

São Paulo

Uma certa vez o escritor Julio Cortázar disse que o conto era o resultado de uma batalha entre a vida e a expressão escrita da vida. Era, em suas palavras, “uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência”.

O argentino foi um dos autores que mais se dedicaram a escrever e a pensar as narrativas curtas em meio à popularidade dos romances. E dá para argumentar que ali, nas páginas concisas, se concentra o melhor deste que foi um dos artistas mais revolucionários da história da literatura. É o que diz, por exemplo, o crítico Davi Arrigucci Júnior, talvez o maior leitor brasileiro de Cortázar.

“A maneira como ele manobra o cotidiano, a ruptura inesperada de uma vida aparentemente rotineira e banal, a quebra da rotina com o estranhamento do fantástico foram marcas sensíveis da produção dele”, aponta Arrigucci, por telefone, ainda se recuperando de uma internação por Covid. “Aquilo que você acreditava que estava no lugar certo é tirado do lugar. E surge uma realidade mais real do que aquela que estava amortecida pelo lugar-comum.”

A publicação, pela primeira vez no Brasil, de um tomo de mais de 1.100 páginas com todos os contos de Cortázar oferece agora uma oportunidade de ouro para desalojar o leitor do amortecimento.

Para entender melhor o que afirma Arrigucci, é útil lembrar alguns dos textos mais conhecidos do autor —entre as mais de duas centenas deles reunidas no calhamaço.

Em “Bestiário”, que dá nome ao livro de estreia que causou um terremoto imediato na Argentina, uma família convive com naturalidade com as andanças de um tigre pela casa. Seu dia a dia é afetado, às vezes, pelo inconveniente de ter um predador carnívoro ocupando um ou outro cômodo.

Em “A Autoestrada do Sul”, um engarrafamento na França começa a se estender por dias, semanas, e transforma os motoristas numa espécie de comunidade paralela de laços e regras próprias. E, talvez na mais famosa de todas as histórias, um casal reage com resignação à inexplicada e sufocante invasão de estranhos em sua “Casa Tomada”.

“Cortázar instala coisas absurdas numa situação normal. Faz como um trançado no meio da realidade, que a altera”, afirma Heloisa Jahn, tradutora experiente que ficou responsável pela versão em português do primeiro dos dois volumes. “O conto dispara você para um outro patamar, diferente do trivial de onde você partiu.”

Para explicar a arte em que Cortázar se tornou mestre, Jahn lembra uma tese do escritor Modesto Carone —um conto é uma situação armada e um corte fulminante. A definição lembra um outro chavão, usado pelo próprio autor argentino, que diz que um romance sempre ganha do leitor por pontos, enquanto o conto ganha por nocaute. Cortázar, um aficionado por boxe, nocauteia.

Mas seu interesse —melhor dizendo, sua busca angustiada— era menos arrasar o leitor que estabelecer com ele uma comunicação, e junto com ele investigar os limites entre a linguagem e a vida.

Observe o desfecho fulminante de “Cartas de Mamãe”, que acaba por insinuar a presença mais viva de um personagem já morto que a de seu irmão e companheira, enlutados e culpados por sua desaparição. Ou o sucinto “Continuidade dos Parques”, que em duas páginas faz uma mistura inextricável entre o personagem de um romance e o homem que o está lendo.

Davi Arrigucci é autor de um estudo de referência sobre Cortázar, “O Escorpião Encalacrado”, tese de doutorado transformada em livro em 1973. O nome vem da ideia de que a investigação do argentino sobre a literatura é tão incessante e radical que no fim se volta contra seu próprio processo de escrita —como um escorpião que aferroa a si mesmo.

“Em ‘O Jogo da Amarelinha’, isso é levado a um extremo”, diz ele. “É uma espécie de romance em gestação, acompanhado da consciência crítica de cada passo que ele dá na escrita da narrativa. Nos contos isso também é incorporado de forma inteligente, com uma clareza decisiva sobre si mesmo que, no extremo, põe em xeque a própria narrativa.”

Outro exemplo é “As Babas do Diabo”, um conto cuja fama ganhou o empurrãozinho do clássico do cinema que inspirou poucos anos depois –“Blow-Up”, de Michelangelo Antonioni.

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Cena do filme "Blow-Up - Depois daquele Beijo", do diretor Michelangelo Antonioni - Divulgação

Um fotógrafo captura uma imagem aparentemente inocente de um casal ao ar livre e, depois, confrontado com a imagem ampliada, passa a suspeitar de contornos macabros na cena. A fotografia vai ganhando autonomia frente à percepção de seu autor, o narrador —e frente àquilo que está sendo escrito por ele.

É um conto sofisticado, mas como diz Júlio Pimentel Pinto, professor da Universidade de São Paulo especializado em história e ficção latino-americana, Cortázar é um raro autor que consegue oferecer histórias complexas e de fácil leitura. Vale lembrar que estamos falando de um escritor que sempre valorizou o lúdico, para quem a brincadeira era coisa séria.

“Ele alcança um leque amplo de leitores, tanto o sujeito que pega o livro numa viagem de avião quanto o que investe semanas nele”, afirma o professor. “Você pode se concentrar só no plano do enredo, na superfície. Pode escavar um pouco mais e ver a construção de personagens, a variação de foco narrativo. Pode escavar mais e buscar questões políticas, filosóficas. Permite muitos níveis de leitura.”

O movimento de “As Babas do Diabo”, que aproxima a escrita à fotografia, lembra uma comparação iluminadora feita pelo próprio Cortázar.

Fotógrafos e contistas, disse ele, se empenham no aparente paradoxo de “recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o campo abrangido pela câmara”.

Essa vida própria que ganha o conto tem a participação ativa de seus personagens, o que Júlio Pimentel identifica como “um caleidoscópio narrativo, um mosaico de vozes”. O ato poético de Cortázar, diz Arrigucci, incluía se apossar de outros sujeitos, se encarnar no outro de repente.

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Dedicatória de Julio Cortázar em uma edição de 'Fim de Jogo' que Heloisa Jahn tem em sua casa - Arquivo pessoal

A tradutora Heloisa Jahn repete algumas vezes, durante a entrevista, as duas palavras que resumem sua interpretação de Cortázar —liberdade e imaginação. Jahn acabou se tornando amiga do escritor na sua época de exilada na França, no começo dos anos 1970, para onde foi após ser detida e interrogada duas vezes pela ditadura militar. Até hoje escuta a voz dele para tomar decisões de tradução.

“Eu vim para São Paulo para estar num lugar mais aberto, aí vem a ditadura e me amassa", conta ela. "Meus amigos começaram a ser presos e mortos. Aí eu vou para Paris, não tenho um tostão. Tenho que inventar como ganhar dinheiro. Toda a minha relação com Cortázar e sua literatura está ligada a esse contexto.”

O contato com o autor foi, segundo ela, a abertura “de um mundo completo”. “Você não precisa ficar preso, você se liberta, você inventa.”

Lembra algo que disse Cortázar uma outra vez —chega um momento em que não queremos mais ser nós mesmos e nossas circunstâncias. “Há uma hora em que desejamos ser nós mesmos e o inesperado, nós mesmos e o momento em que a porta que antes e depois dá para o saguão se abre lentamente para nos deixar ver o prado onde relincha o unicórnio.”

Todos os Contos

  • Preço R$ 269,90 (1.144 págs.); R$ 69,90 (ebook)
  • Autoria Julio Cortázar
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista
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