Daqui a alguns anos, talvez décadas, vai ser inevitável olhar para trás. E a gente vai começar a perceber como as obras de arte lançadas durante a pandemia conversam entre si, quais temas influenciam umas, quais sensibilizam outras e como músicos, diretores, escritores, pintores tiveram seus trabalhos impactados pelas mais de 2.000 mortes que hoje ocorrem todos os dias no Brasil por causa do coronavírus.
Com a luz do fim do túnel cada vez mais distante e os assustadores recordes sequenciais de óbitos no país, esse trabalho vai ficar para críticos e pesquisadores do futuro. Mas arrisco aqui um palpite –Alceu Valença vai engordar as fileiras do cordão dos artistas melancólicos.
Chega a soar bizarro dizer isso de um artista que é a própria encarnação do Carnaval e que imortalizou em composições os bares de Olinda e do Recife, o suor, a alegria, o flerte, as ladeiras amontoadas, o frevo, a boca suja de batom, o calor, o pecado, o cheiro do sexo nos lençóis. Mas uma certa tristeza geral parece escorrer de seu novo álbum, “Sem Pensar no Amanhã”.
Lançado agora, o disco foi todo produzido durante o isolamento provocado pela pandemia. Trancado em sua casa no Rio de Janeiro, onde a festa e o sol pernambucanos não passam de uma saudade, o artista resolveu eliminar penduricalhos de algumas de suas composições e simplificou os seus arranjos, chegando às 11 canções escolhidas. Equilibrando clássicos, faixas menos lembradas e uma composição inédita, o álbum tem todas as músicas acompanhadas só pelo violão.
Essa é a primeira experiência do cantor e compositor numa das principais instituições brasileiras, que foi levada ao limite pela bossa nova, a voz e o violão —e outros dois discos nessa toada devem ser lançados em breve. Mas, se fosse só isso, a novidade não passaria de uma coletânea regular e de mais um produto feito para ser consumido, descartado e logo esquecido.
Na abertura, Alceu surge cantando “La Belle du Jour” e, mais adiante, entoa outro hino dos karaokes, “Táxi Lunar”. A simplificação para os acordes do violão pasteuriza as composições e cria certo clima de churrascaria ou de barzinho com música ao vivo —o pernambucano parece um cover de si mesmo que, a qualquer instante, pode puxar “Burguesinha”, “Velha Infância” ou qualquer coisa de Djavan ou de Ana Carolina.
Mesmo as belas surpresas do disco ficam pernetas no violão. “Mensageira dos Anjos” perde a sua pegada progressiva, enquanto o dueto de frevos “Chego Já” e “Pirata José” têm o compasso prejudicado sem os sopros. É como se as cordas não dessem conta da surra sonora de Brasil que marca a obra do cantor prestes a fazer 75 anos.
O destaque positivo nesse campo é a faixa-título, o samba carnavalesco e inédito “Sem Pensar no Amanhã”, que já foi planejado para chegar assim ao mundo —ou, pelo menos, assim foi apresentado aos nossos ouvidos, em versão que começa lembrando “Sonho de um Carnaval”, de Chico Buarque, mas que depois encontra seus próprios caminhos.
Mas tudo isso é um jogo de cena, é só a casca do conjunto. Ao contrário do que já cantou em “Agalopado”, Alceu está longe, muito longe, de ser um porta-voz da incoerência. O novo disco não é um pot-pourri aleatório, uma mera mudança de roupa em velhas canções nem uma simples coletânea de sucessos pronta para invadir caixinhas de som de um churrasco pós-pandêmico.
Sua relevância está além. Com um pouco de atenção, notamos que o álbum tem uma costura precisa entre as faixas, que se ligam ao cantar Olinda, a folia, um certo vapor de paquera e de pegação.
Mesmo a baixa voltagem e a calmaria se tornam elemento narrativo. Vale lembrar, por exemplo, que Alceu já cantou e se apresentou com a orquestra de Ouro Preto —e, nem por isso, deixou de incendiar o palco e de eletrizar as versões tocadas por violinos e regidas pelo maestro cercado por músicos de paletó. O tom mais baixo do novo disco ganha outras camadas. O sussurro, a certa lentidão, a calma estranha para a figura de cabelos esvoaçantes, tudo isso conversa com o hoje.
É como se a obra fosse guiada pela saudade e pela impossibilidade de viajar, de subir as ladeiras de Olinda, de ver o mar verde cercado por coqueirais, de beijar pelas ruas um desconhecido que nunca mais vamos encontrar. Em “Sem Pensar no Amanhã”, a alegria é cantada com a melancolia de um palhaço triste que dança frevo.
A coerência interna vai ainda um pouco mais adiante. Ela mostra que o coro da saudade sempre desemboca em algum tipo de esperança. Não à toa, a última faixa é “Marim dos Caetés”, que começa com os versos “não chore, menina bonita/ se Deus quiser/ te vejo na Marim guerreira/ dos Caetés”.
O violão na voz de Alceu não se limita ao lamento. Ele também busca a esperança no meio do caos. Se no futuro vai ser inevitável olhar para trás, o artista de hoje tenta olhar para frente. Quem sabe para um país no qual poderemos sair de novo, passear sem máscara, beber uma lata de Pitu, desaparecer num bloco qualquer no Carnaval e só acordar na Quarta-Feira de Cinzas.
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