Descrição de chapéu Livros

Volume reúne ironia e sonoridade da obra de Angélica Freitas

Origem da poeta surge vivamente exposta nos poemas iniciais do título 'Canções de Atormentar'

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São Paulo

Angélica Freitas está muito ocupada. Não pense que, porque acabou de lançar “Canções de Atormentar”, a poeta gaúcha anda descansando.

“Já acordo com vontade de escrever”, diz Freitas, falando à repórter de Berlim, para onde se mudou de mala, cuia (de mate), com a namorada, a cantora Juliana Perdigão, e as gatas, para um ano como artista residente sob os auspícios do DAAD, a sigla germânica para Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico.

A poeta Angélica Freitas em São Paulo, em 2018
A poeta Angélica Freitas em São Paulo, em 2018 - Karime Xavier/Folhapress

Foram oito anos entre “Um Útero É do Tamanho de um Punho”, lançado originalmente pela Cosac Naify em 2012 (e reeditado pela Companhia das Letras em 2017) e o novo livro.

Nesse intervalo, ela não pensava que houvesse um, mas múltiplos livros em formação, “o que dava uma certa agonia”. “Me dei conta de que eu tinha vários cadernos escritos e não tinha passado nada a limpo.”

O conjunto de cadernos —parte dos quais teve de mandar vir de Pelotas, de onde se mudou para São Paulo, em 2017— ela compara a uma “gaveta de meia, cada uma de um pé, todas muito coloridas”. “Tentei deixar as meias coloridas de um pé só para arrumar depois e fui fazendo as conexões.”

A seleção foi se dando pela memória. “Um critério que usei para fechar o livro”, diz, foi escolher “os poemas de que eu me lembrava e gostava, e eles tinham afinidades”.

Foi assim que “Canções de Atormentar” saiu bem pareado e faz, de certa forma, uma síntese de qualidades muito claras de sua poesia.

Estão nele o apreço pelo humor irônico, notável já em “Rilke Shake”, de 2007, e que se tornou mais ácido e combativo em “Um Útero”; as citações a outros autores, nunca porém reverentes; as onomatopeias e outros recursos sonoros que trazem a fala para a língua escrita.

Mas é com algo que não tem par em sua poesia anterior que se abre este “Canções de Atormentar”.

Nos outros dois livros, sua origem parece quase circunscrita às informações sobre a autora —“Angélica Freitas nasceu em Pelotas, em 8 de abril de 1973”. Agora surge vivamente exposta nos poemas iniciais que falam do Laranjal— praia onde passou todos seus verões até os 18 anos.

O cenário não é idílico, o que não impede o lirismo desencantado no retrato da praia de lagoa, às vezes de água poluída, ameaçando banhistas com perebas ou cacos de vidro, onde os armazéns “no inverno vendem latas de ervilha, purê de tomate, pão de fôrma”.

Uma praia estranha para os forasteiros, registra a poeta. “‘Isto aqui até parece uma praia’/ me diz o rapaz que veio de São Paulo/ ao ver as figueiras, a lagoa, a areia grossa// não lhe guardo rancor.”

Angélica Freitas conta que gosta de trabalhar em séries de poemas, “ir colocando poema, tirando poema”. Da série da praia, ficaram no livro “Laranjal” e “Traíra”. Mesmo se são só dois, dão ao leitor a sensação de um mergulho profundo na memória.

“Eu fiquei aumentando e cortando essa série durante pelo menos uns 11 anos. Eu escrevi coisas do Laranjal na Holanda, bastante coisa na Argentina, é uma série que de certa forma eu escrevi pensando no lugar de onde eu sou, mas fora desse lugar.”

“Eu sempre fugi de Pelotas”, conta. “Desde muito pequena eu tinha certeza de que eu não ia ficar lá na minha cidade, que eu precisava ir para um lugar maior. É também uma maneira de lidar com lá, com
essas tentativas de escapar.”

Escapar e, ao mesmo tempo, “colocar o Laranjal no mapa”. Angélica Freitas recorda a importância que teve nisso Vitor Ramil, escritor e músico, também pelotense, com quem tem uma longa parceria.

“Ele escreveu um livro que se chama ‘Satolep’[2008]”, Pelotas ao contrário, frisa; “isso me incentivou a escrever, mais do que sobre Pelotas, sobre o Laranjal, que tem muito a ver com minha formação afetiva”.

Ramil musicou poemas da conterrânea para um show, “Avenida Angélica”, no ano passado. Se toda a poesia depende da sonoridade, a poesia de Freitas é, de fato, evidentemente musical.

Seus poemas parecem ter sido escritos em voz alta, ou pedirem para ser lidos assim. “Eu escrevo muito baseada no som do que está escrito no caderno. Eu vou compondo o poema muito a partir do que eu estou ouvindo na minha cabeça. Depois, para fazer o teste, eu leio em voz alta, cortando, quase nunca acrescento.”

É possível dizer, assim, que as canções não se limitam ao título do livro. Este, por sua vez, remete à última seção, escrita como uma performance, apresentada pela primeira vez em 2017, reunindo no palco a poeta e Juliana Perdigão.

Nele, retorna uma figura cara à autora, a da sereia —que já aparecia em “Sereia a Sério”, de “Rilke Shake”.

Lá, a sereia sofrida de Hans Christian Andersen, a que “pisa em facas quando usa os pés”. Aqui, a que atormenta “o ouvido de quem só quer/o butim dos marinheiros”, numa espécie de revanche.

A sereia, diz, é “uma mulher que não se encaixa totalmente, tem rabo; essa coisa de não se encaixar, de não fazer parte, é muito presente para mim”.

Para o livro, conta, ela pensou em “como as sereias são mal faladas”, mulheres sexy e perigosas. “Eu quis imaginar umas sereias que não estivessem a fim de seduzir os marinheiros. Como se fosse mesmo a vingança das sereias. Elas não estão lá para cantar para os marinheiros; elas querem, sim, afundar os navios.”

Canções de Atormentar
Autor: Angélica Freitas. Ed.: Companhia das Letras. R$ 49,90 (112 págs.); R$ 29,90 (ebook)

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