Durante a pandemia de coronavírus, os drive-ins viraram a nova sensação em várias cidades do país. Uma das poucas formas de entretenimento para além do sofá em tempos de distanciamento social, esse tipo de atração pipocou e, só em São Paulo, já ocupou o Centro de Tradições Nordestinas, o Allianz Parque, o Memorial da América Latina, a ponte estaiada e o Tom Brasil —e mais deles ainda estão a caminho.
Mas o volume de eventos do gênero e a diversidade dos locais que os recebem evidenciam um problema. Ao contrário do que muitos podem achar, para montar um drive-in não basta estender uma tela num espaço grande o suficiente para receber carros e ligar o projetor. Há muita burocracia envolvida nisso e nem todos estão dispostos a respeitar as regras.
Desde que o frenesi do cinema sobre rodas começou, diversos exibidores de São Paulo e de outras regiões do país têm denunciado drive-ins piratas, que projetam filmes sem a autorização dos detentores de seus direitos autorais.
Empresários e associações do parque exibidor calculam que mais de 50 eventos tenham sido identificados, no mês passado, por anunciarem filmes para os quais supostamente não tinham autorização para exibir. Destes, muitos acabaram se regularizando antes das sessões, enquanto outros precisaram alterar a programação. Uma parte, porém, seguiu inalterada e fora da lei.
Um dos casos mais emblemáticos dessa disputa entre exibidores de longa data, que têm promovido drive-ins regulamentados, e amadores que burlam as leis aconteceu na cidade de Bebedouro, no interior paulista.
Entre maio e junho, a prefeitura ali promoveu uma série de sessões de cinema no sambódromo da cidade. Os longas inaugurais foram “O Rei Leão” e “Vingadores: Ultimato”, ambos da Disney. O problema é que o estúdio, por enquanto, não está licenciando seus filmes para drive-ins.
Na semana seguinte, Bebedouro voltou com a programação cinematográfica, mas dessa vez deixou a escolha dos longas a critério da população, que pode votar em suas preferências. Entre os seis filmes da enquete, quatro também eram da Disney.
“Fizemos na primeira semana e foi um sucesso absoluto. A empresa contratada tem todas as licenças e autorizações e, nesta semana, vamos pedir a opinião da população para escolher os filmes”, disse o prefeito Fernando Galvão à época, em nota publicada pela assessoria de imprensa da cidade em seu site.
A empresa em questão é a Cine Cidade Produções Cinematográficas Eireli. Procurado, o proprietário dela, Rogério Nascimento, afirmou que só alugou os equipamentos para a prefeitura e alegou que o suposto caso de pirataria seria irrelevante por estarmos no meio de uma pandemia. Ele não quis dar entrevista ou mais informações sobre o caso.
Já a prefeitura diz que a empresa “ficou com toda a responsabilidade [pelos filmes], segundo contrato firmado”.
A 50 quilômetros dali, em Barretos, Marcio Eli Leão, diretor da Centerplex Cinemas e da Associação dos Exibidores Brasileiros, pagou o preço por regularizar os filmes que exibiu em seu drive-in —literal e metaforicamente.
Por causa da concorrência pirata, com ingressos mais acessíveis, Leão viu seu cinema ao ar livre esvaziar. “Tomei uma ‘bucha’ em Barretos, porque ninguém aceita os filmes que exibi, querem os filmes de Bebedouro. Somos chamados de defasados, de ladrões, porque não conseguimos competir com os preços dos piratas”, diz.
Seja em sessões de cinema tradicionais ou em drive-ins, uma parte da arrecadação de ingressos costuma ir para os detentores dos direitos do filme exibido. Essa porcentagem gira em torno de 50% para títulos novos e vai caindo conforme seu envelhecimento.
Além do repasse aos estúdios, existe ainda um valor que vai para o Ecad, por causa da trilha sonora dos longas. Os exibidores também precisam cadastrar seus drive-ins junto à Ancine, como se fossem uma sala de cinema tradicional.
“Aqueles que já são exibidores é que deveriam estar operando os drive-ins, porque é uma continuidade, o aprimoramento de uma atividade muito específica”, explica Sherlon Adley, diretor comercial e de marketing da Cinesystem, que já realizou seis projetos do gênero pelo país e tem mais 11 em abertura ou em processo de negociação.
“Muita gente está entrando nesse mercado sem respeitar o modelo. Acho que todo mundo tem que ganhar dinheiro, ainda mais nesse momento, mas da maneira correta. Fico chateado quando vejo gente que quer fazer drive-in só porque tem uma tela e um Blu-ray.”
Segundo ele, como há muitos exibidores novatos nessa área, alguns não agem de má-fé e, assim que ficam cientes dos trâmites necessários, desistem dos projetos ou se adequam às normas.
“Eu tenho amigos que operam drive-ins no interior que, com os piratas, perderam metade do público, porque esses caras não têm custos, eles vendem ingressos por metade do preço e o consumidor não entende isso”, afirma Adley, que estima que o custo de infraestrutura para operar um drive-in em seu mês inicial gira em torno de R$ 70 mil.
Outra exibidora de longa data, mas especificamente do segmento de drive-ins, é Marta Fagundes, sócia-administradora do tradicional Cine Drive-in Brasília, inaugurado em 1973. Segundo ela, a atual moda de eventos do gênero não deve sobreviver à pandemia, justamente pelo amadorismo observado em alguns deles.
“Eu fiz um pedido para que a gente funcionasse [durante a pandemia] e, depois disso, começou a surgir um monte de drive-in. Mas são cinemas estabelecidos em locais provisórios, tipo itinerantes. Então eu não acho que essa moda vai ficar, até porque eu estou percebendo, e eu sabia que isso ia acontecer, que muitos organizadores não estão conseguindo a liberação de filmes, porque isso é algo bem complexo”, explica Fagundes.
Ela destaca ainda as especificidades dos cinemas ao ar livre, que precisam de telas e projetores mais potentes. “As pessoas têm que ter na cabeça que abrir um cinema é como abrir qualquer outro negócio, então você tem que saber todas as leis e normas que o regulam.”
Nesse labirinto de autorizações necessárias para montar um drive-in, alguns exibidores regularizados reclamam que falta fiscalização. O Seecesp, Sindicato de Empresas Exibidoras Cinematográficas do Estado de São Paulo, tentou estancar o problema ao enviar um comunicado à Associação Paulista de Municípios, para repasse às prefeituras paulistas, e ao Conar, endereçado a anunciantes, para que impeçam os eventos piratas de acontecer.
Já a Motion Picture Association, associação que representa os principais estúdios de cinema americanos, afirmou que está “comprometida com a proteção da indústria do entretenimento”.
“No meio dessa crise de saúde global sem precedentes, nós apoiamos e encorajamos formas alternativas de entretenimento, a exemplo dos drive-ins —e temos trabalhado com agentes da indústria e com os responsáveis por tais eventos, para assegurar que esses exibidores cumpram os requisitos legais necessários, que são os pilares dessa indústria tão próspera”, diz em nota.
Já o Ecad informa que “está atento aos eventos organizados, mas, de acordo com a lei de direitos autorais, é responsabilidade do promotor entrar em contato com o Ecad de forma prévia à realização do evento para fazer o devido pagamento”.
A Ancine encoraja que denúncias de violação de direitos autorais sejam feitas pelo email de combate à pirataria já disponibilizado antes da pandemia e afirma que “atua de forma coordenada com os órgãos de repressão à violação de direito autoral”.
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