No começo de “Shadow of the Colossus”, lançado pela Sony em 2005, um jovem de cabelo comprido, usando uma capa e uma espada mágica, leva a cavalo, rumo a um templo, o corpo de uma menina sacrificada.
Para ressuscitá-la, o jogador precisa atacar 16 gigantes com feições de animais e personalidade pacífica. A cada golpe, os colossos urram e lutam para sobreviver —e quando finalmente são mortos, o jogo não oferece um mecanismo tradicional de recompensa, como música ou efeitos visuais para produzir uma sensação de êxtase.
Ao contrário, o protagonista desmaia e uma trilha sonora sombria toca depois da queda de cada colosso.
Passar para a fase seguinte é deixar um animal sacrificado para trás, em uma espécie de tourada melancólica. Algo muito distante dos estímulos eufóricos ao vencer inimigos vistos em outros jogos.
“‘Shadow of the Colossus’ é uma experiência estética elevada e é interessante por perverter os signos dos videogames até então”, avalia João Varella, autor do livro “Videogame, a Evolução da Arte”, publicado pela editora Lote 42.
O autor recorre à obra como uma evidência do principal argumento do livro: videogames são uma expressão artística densa, assim como a literatura e o cinema, apesar de serem normalmente vistos como produtos rasos de entretenimento.
Ao longo de 28 capítulos —cada um é um ensaio sobre um jogo que marcou as quase cinco décadas de história dos videogames— Varella registra os principais gêneros, desenvolvedores e estratégias narrativas e visuais.
Por isso, não há um relato linear no livro, fazendo com que algumas questões permeiem diversos capítulos, como a recusa a uma visão purista que separa a criação artística das lógicas econômicas.
Enxergar os videogames como indústria é, para o autor, “absolutamente necessário para perder a ingenuidade”. Varella é também fundador da Lote 42 e da Banca Tatuí.
“Não vejo como analisar a história de qualquer expressão artística sem considerar o mercado. Como o videogame é a mais recente das expressões culturais, ele chega em um contexto mais próximo da globalização”, diz.
Para ele, videogames não são vistos com a mesma legitimidade cultural que outras linguagens porque persiste a ideia de que são entretenimento para crianças e adolescentes. Outro fator seria a ênfase dada a jogos de ação e violência. “A lógica de matar ou morrer é um jeito de gerar imersão, e ficou meio difícil dissociar os videogames dessa ideia.”
A conexão entre videogames e violência, para Varella, leva à estigmatização dessa linguagem e a tentativas de censura, como no episódio em que “Counter Strike” foi proibido no Brasil, em 2008. “Essas pontes são destruídas, e isso faz com que o videogame não tenha reconhecimento e não seja debatido”, afirma.
A marginalização dos games não poderia ser pior em um mundo que assiste, de acordo com o autor, à colonização das regras do universo dos jogos em outras esferas da vida cotidiana, como as redes sociais.
“A Uber te dá pontos, isso é videogame. O aplicativo de corrida te impõe metas e objetivos, isso é videogame. A cultura de videogame está chegando à cabeça das pessoas. São as pessoas que não estão preparadas para isso.”
Um exemplo desse fenômeno é, para ele, a disseminação dos placares pelo mundo digital, uma das técnicas mais antigas para estimular jogadores. “Os aplicativos usam técnicas de gamificação. Hoje, há mais curtidas, mais compartilhamentos, mais seguidores —isso também é um placar.”
Varella avalia que a implicação mais importante desse processo é que há estímulos ocultos que orientam o comportamento das pessoas, daí a urgência de entender as engrenagens dos videogames.
“Isso vai nos condicionando. Vai nos dizendo o que é certo e o que é errado. É normal gostar de ganhar ‘likes’, só que muita gente entrou nesse jogo sem entender que era um jogo, sem saber que tem gente querendo usar uma lógica de mercado. [As plataformas] querem que você fique mais tempo lá porque vai ver mais anúncio, e mais anúncio significa mais dinheiro.”
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