Foi com robustos aplausos que o novo filme de Roman Polanski, “J’Accuse”, foi recebido no Festival de Veneza, nesta sexta-feira (30).
O longa é uma revisita do diretor ao caso Dreyfus, escândalo sobre um militar judeu injustamente acusado de traição à França no século 19.
A obra já estava sob os holofotes mesmo antes da première, quando a presidente do júri da mostra cinematográfica, a argentina Lucrecia Martel, disse que não iria à sessão de gala —um protesto contra a inclusão do diretor na disputa pelo Leão de Ouro, já que ele tem no histórico o abuso sexual de uma garota de 13 anos, ocorrido em 1977.
O boicote de Martel só surtiu efeito em parte, já que o próprio Polanski também não apareceu no Lido. Houve rumores de que falaria à imprensa via Skype, mas nem isso aconteceu. Na entrevista coletiva, compareceram só atores e membros da equipe.
Logo no início, o produtor Luca Barbareschi avisou: “Só falaremos do filme. Isto não é um tribunal moral, mas uma maravilhosa mostra de cinema”. A conversa com a imprensa que se seguiu foi sem grande interesse e tediosa.
Mas o longa não tem nada de tedioso ou desinteressante. A trama fala de Georges Picquart (Jean Dujardin), militar que vê evidências de que o coronel Alfred Dreyfus (Louis Garrel), preso por passar informações secretas à Alemanha, talvez tenha sido injustiçado. Quanto mais investiga, mais certo fica sobre a inocência e mais tem certeza de que foi vítima de antissemitismo.
Conseguirá tornar a verdade pública só após o escritor Émile Zola se engajar na mesma causa e publicar o manifesto “J’Accuse” (eu acuso), denunciando a hipocrisia das instituições francesas para manter a verdade abafada.
O filme é um Polanski em ótima forma, com uma narrativa envolvente, ares de thriller e uma forte preocupação humanística. Qualidades estéticas à parte, ao ser apresentado neste momento, o longa ganha uma importância sociológica, porque permite um estudo das diferenças de comportamento entre as elites culturais dos dois lados do Atlântico quanto à relação entre a vida pessoal de um artista e sua obra.
Não deixa de ser curioso que, enquanto Hollywood expulsa Polanski da Academia do Oscar e a argentina Martel se recusa a aparecer em uma sessão de gala do longa, na França e na Itália o cineasta ainda tem status de ídolo.
Os italianos em geral não têm transparecido grande remorso pela inclusão do diretor no festival e foram os que mais aplaudiram o filme.
E os franceses nunca esconderam o orgulho de trabalhar com o cineasta —atores de imenso prestígio na França aceitaram, inclusive, papeis ínfimos no longa. É o caso de Mathieu Amalric, Denis Podalydès, Melvil Poupaud e Louis Garrel —este último, aliás, estará no novo filme de Woody Allen, outro cineasta que ainda é idolatrado na França e vilanizado nos Estados Unidos.
E há ainda Dujardin, o protagonista, que na entrevista não mostrou uma gota de arrependimento. “Foi uma experiência que seria excelente a todos vivenciar. O que vai ficar comigo é o orgulho”, disse.
“J’Accuse” desperta ainda uma análise de natureza psicanalítica porque soa como um grito de socorro do próprio Polanski sobre sua situação atual. Fala de pessoas que se sentem perseguidas, publicamente linchadas, cruelmente condenadas. Como se o diretor fizesse seu próprio “j’accuse”, denunciando veladamente como tem se sentido e o quanto se acha injustiçado.
Seria um desabafo legítimo? Ou uma enorme cara de pau? Resta saber como a história vai julgá-lo.
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