“O que você quer dos seus pais?” O juiz pergunta na corte para o menino de 12 anos, um refugiado sírio que vive sem documentos nas ruas de Beirute. “Quero que eles parem de ter filhos”, responde a criança gritando, ao processar os pais por ter nascido.
A cena é do filme “Cafarnaum”, da libanesa Nadine Labaki (“Caramelo” e “E Agora, Onde Vamos?”). Estreou no Brasil na semana passada, após receber prêmio em Cannes, na Mostra Internacional de São Paulo e ser indicado ao Globo de Ouro e ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
O processo do filho contra os pais é ficção, mas todo o resto é baseado em pesquisas e entrevistas que Labaki fez com crianças em favelas, instituições e centros de detenção para menores no Líbano, durante três anos. Ao final de cada conversa, perguntava se a criança estava feliz de estar viva.
“Na maioria das vezes, a resposta era não. Eles não entendiam por que nasceram se não vão ser amados, se vão apanhar, ser molestados”, contou a diretora num evento em Los Angeles. “Muitos nem sabem quando nasceram, nunca celebraram um aniversário.”
Os atores não profissionais também acrescentam uma carga documental ao projeto, já que suas vidas são parecidas aos de seus personagens. Zain, o protagonista, é vivido pelo sírio Zain Al Rafeea, que fugiu aos oito anos da guerra na Síria.
Sua performance foi considerada uma das melhores do ano pelo jornal The New York Times, enquanto a apresentadora Oprah Winfrey foi só elogios. “Não consigo parar de pensar nesse filme”, escreveu numa rede social.
“A única diferença é que ele tem pais adoráveis”, disse Labaki ao lado de Zain, hoje com 14 anos e de poucas palavras. Uma equipe de cinco pessoas vasculhou o país por meses atrás de gente para estrelar o filme e encontrou Zain brincando na porta de casa. “Ele é como você o vê na tela. Muito forte, responsável, sabe as regras da rua e virou uma voz para todas as crianças.”
“Cafarnaum” (que toma seu nome de uma cidade bíblica que virou sinônimo de caos) revirou a vida pessoal de Labaki. Ela estava grávida do segundo filho quando decidiu pesquisar a fundo o aumento significativo de crianças refugiadas morando nas ruas de Beirute.
Ela trouxe o marido, Khaled Mouzanar, para liderar a produção, e ele também assina roteiro e faz a trilha sonora. Os dois hipotecaram a casa e atrasaram mensalidades da escola do filho para pagar as contas do filme. A equipe rodou mais de 500 horas e levou dois anos editando.
“Ou o projeto dava certo, ou a gente se divorciava. Era vida ou morte”, disse Mouzanar, sério, apesar das risadas da plateia.
No longa, Zain foge de casa quando seus pais vendem (por algumas galinhas) sua irmã menor ao atingir a puberdade. Ele faz amizade com uma faxineira africana também refugiada ilegal e ajuda a cuidar de seu filhinho de um ano. Quando ela é presa, Zain fica a sós com o bebê.
As filmagens duraram longos seis meses porque a diretora queria levar em conta o tempo das crianças. É possível notar a evolução, e o bebê dá seus primeiros passos em frente às câmeras. “Não havia espaço para atuações, eles tinham que ser quem eles são”, afirmou Labaki.
“Talvez porque minha filha tivesse com a mesma idade, me conectei muito com o bebê. Sabia das suas necessidades e sabia também como filmar, quando colocaria a mão no peito da mãe, coisas assim.”
Na vida real, o bebê, que na verdade é uma menina, acabou deportado com a mãe para o Quênia, enquanto Zain ganhou passaporte norueguês e se mudou para o novo país com a família em 2018. Ele agora frequenta a escola pela primeira vez na vida e quer ser ator. “Hoje vi pela primeira vez ele assinar seu próprio nome. Foi emocionante”, contou Labaki.
O filme não tem um final feliz assim, mas há um sorriso. “As pessoas me perguntam o que significa o final. Para mim, é apenas uma pequena vitória”, disse.
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