O facão enferrujado tem a mesma cor da terra, um vermelho poeirento e sanguíneo.
Lâminas de facas e tesouras, instrumentos que ferem e ao mesmo tempo podem curar, infestam os interiores das casas do cerrado que Dalton Paula vem retratando em suas pinturas mais recentes.
Não há ninguém ali. Seus casarões de fazenda são austeros e esquemáticos. Na sala de um deles, um pé de bananeira, uma faca enfiada no tronco, domina o ambiente. Machados descansam, à direita e à esquerda no quadro, suas partes que cortam mergulhadas em copos com água.
São armas caladas, os vestígios de uma violência invisível que ronda as suas telas.
"Nas festas de são João, dizem que, se a mulher solteira pegar uma faca virgem e enfiar na bananeira à meia-noite, a inicial do nome do futuro marido aparece no outro dia", ele diz. "E tem histórias de pessoas que querem se vingar e enfiam a faca na bananeira para ela se oxidar e fincar no bucho de um, porque aí a facada é mais forte."
Paula entende de ferimentos, graves ou não. O único artista brasileiro na atual Trienal do New Museum, uma das maiores mostras da atual temporada de primavera nova-iorquina, trabalhou como bombeiro no interior de Goiás por quase uma década antes de conquistar seu lugar no cenário artístico do país.
Quando não estava pintando, desenhando ou fazendo seus vídeos em casa, ele socorria vítimas de acidentes e ataques violentos, estancando a sangria de gente baleada ou escorando ossos quebrados em brigas de rua.
"O fio condutor do meu trabalho é o corpo silenciado, e esse silenciamento eu penso como uma enfermidade", diz. "Tem muito de questões de cura nas minhas obras. O fato de eu estar cuidando do outro tem a ver com o que faço."
Há quatro anos, quando estreou no cenário artístico do país com uma mostra na galeria Sé, em São Paulo, seu passado de bombeiro e suas origens humildes eram sempre lembradas por galeristas e curadores, que deram uma aura pop e ao mesmo tempo naïf à leitura de suas obras.
"Muitos artistas negros são enquadrados nesse lugar, vistos como naïf", ele diz, lembrando o termo para artistas populares, sem estudo formal, embora ele tenha feito belas artes. "Pode até ser uma das linguagens que eu uso, mas as questões das minhas obras são contemporâneas."
Corpo Negro
Numa época marcada pelos esforços por destacar novas vozes, em especial negras e periféricas, no mundo branquíssimo dos museus, Paula, hoje com 35 anos, vem se firmando como um dos nomes mais fortes de sua geração.
Seu trabalho constrói o retrato de um Brasil profundo, que desconhece os vernissages, ao mesmo tempo que disseca e desarma o racismo com representações da experiência negra num país que parece ainda não ter superado seu passado escravocrata.
Nesse sentido, o vermelho da terra do cerrado onde ele nasceu e cresceu se torna extensão dos tons de pele dos corpos mestiços, como se o fantasma de uma negritude ultrajada rondasse mesmo as suas paisagens e interiores domésticos mais esparsos.
"Os tons terrosos nesses trabalhos estão em diálogo com a pele negra", diz Paula. "Existe uma tensão nesses lugares, como nos terreiros e nos quilombos. E a gente pode pensar em quilombo de uma forma expandida, por exemplo uma escola de samba."
O mercado e as instituições, aliás, foram rápidos ao notar seu domínio dessa estratégia cromática ao mesmo tempo delicada e contundente. Há dois anos, logo depois de sua estreia numa galeria comercial, ele foi escalado para a Bienal de São Paulo.
Seu trabalho na mostra paulistana, a principal vitrine a catapultar sua ascensão no circuito global, eram pratos de cerâmica usados em rituais do candomblé em que pintou centenas de figuras negras vestidas de branco.
Na sequência, vieram os convites do New Museum, uma das instituições mais influentes do mundo, e da Bienal do Mercosul, aberta neste mês em Porto Alegre.
Mas, enquanto o artista aparece cada vez mais, as figuras que retrata vêm saindo de cena. Paula parece ter entendido que nada denuncia mais o ódio calcado na cor da pele do que a ausência de personagens nas telas, fazendo a exclusão deles ali espelhar a dos negros de carne e osso.
"Essa ausência tem muito a ver com a ausência desses corpos negros na pirâmide social", diz Paula. "O lugar reservado a eles é sempre a base da pirâmide. Esses ambientes populares com os objetos de agressão são metáforas dessas agressões sociais."
Mas, bem antes de pintar a série de telas agora em Nova York, o artista já transformava essas agressões em obras.
Ele não se esquece do dia em que entrava num mercado, e uma mulher, quando o viu passar, gritou para um vendedor pedindo que ele vigiasse a bolsa dela no balcão.
Paula então fez um vídeo em que aparece vendado tentando acertar uma bolsa com um pedaço de pau. É como se tentasse rachar uma piñata, sublimando a dor num jogo atravessado pela violência.
Num jantar em homenagem a ele na casa de uma colecionadora em Manhattan, onde o artista era um dos únicos negros, esse vídeo passava em looping num televisor.
"Ocupo esse lugar do corpo suspeito, pelo simples fato de ter a pele escura", diz o artista. "É esse corpo suspeito, sexualizado, ligado ao marginal. Quando ando na rua, tenho que ficar atento a coisas que pessoas de outras cores nem precisam pensar."
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