A desconfort�vel culpa branca de George Clooney em 'Suburbicon'
Divulga��o | ||
Julianne Moore e Matt Damon em cena de 'Suburbicon', de George Clooney |
Reserve espa�o em seus pensamentos para "Suburbicon".
� um filme de George Clooney sobre... bem, n�o sei ao certo. A ideia era que fosse um daqueles que n�o s�o mais feitos: repleto de estrelas, n�o muito caro, intelectualizado mas n�o demais.
N�o deveria surpreender que esse tipo de filme continue a ser feito, mas eu, pelo menos, sempre me surpreendo: � um filme de princ�pios, radiativamente repleto de princ�pios.
Se o cinema est� em dificuldade (as coisas n�o v�o l� t�o bem nas bilheterias dos Estados Unidos, e esse filme, especialmente, foi um enorme fiasco), � porque o vasto meio do caminho desapareceu dos filmes norte-americanos, e com ele os personagens memor�veis, o talento dos roteiros, a divers�o e o risco —bem como aquela forma de seriedade moderada que n�o se prostra diante dos eleitores do Oscar.
"Suburbicon" parece ser o �ltimo suspiro desse meio do caminho desaparecido. O filme se encara como fr�volo e s�rio a um s� tempo.
Mas, para isso, � preciso um toque que George Clooney jamais teve. Ele parece determinado a aplicar sua mistura de seriedade sincera e humor quadrad�ssimo ao que v� como um retrato da era da luta pelos direitos civis.
O filme se passa nos anos 50, em um enclave da Pensilv�nia, e o casal interpretado por Matt Damon e Julianne Moore tenta ignorar as dezenas de brancos que est�o causando arrua�a na casa de uma fam�lia negra cujo quintal � adjacente ao deles. (� justo esclarecer que a arrua�a acontece na frente da casa e n�o nos fundos.)
Damon interpreta Gardner Lodge, um daqueles sujeitos brandos e comuns - gordinho, com �culos de arma��es escuras, engomado em toda parte —que se veem envolvidos em situa��es que excedem de longe os seus recursos, e o ator n�o parece ter compreendido o que o personagem deve representar.
Moore interpreta a mulher de Gardner, Patricia, e tamb�m sua cunhada, Maggie, injetando quantidades diferentes de ar nos di�logos de cada personagem.
Certa noite, uma dupla de assaltantes invade a casa deles. Algu�m morre. E o filho dos Lodge, Nicky —um menino de 10,11, 12 anos?— passa o filme tentando compreender o que est� acontecendo. Ele � o centro moral da hist�ria. E parece representar tamb�m a audi�ncia-alvo.
Joel e Ethan Cohen escreveram o roteiro, com participa��o de Clooney e Grant Heslov. Assim, estamos vendo "Fargo" mas refeito por pessoas que chegaram � conclus�o de que faltava culpa branca a "Fargo".
A hist�ria tem os gordos, o humor e a loquacidade insincera dos Coen, acompanhados pela moralismo pio de Clooney. De vez em quando o filme deixa de lado o que est� acontecendo na casa dos Lodge e mostra a loucura que n�o para diante da casa dos vizinhos negros.
As cenas em geral envolvem um monte de extras brancos marchando e gritando na dire��o da fachada da casa.
Algu�m sobe em um carro, e posiciona uma bandeira confederada em uma janela quebrada.
Em dado momento, Oscar Isaac, f�cil como sempre, aparece como um perito de seguros que faz quest�o de explicitar a situa��o: "Nossa, parece at� que estamos no Mississipi".
Tente de novo, Oscar. Estamos na velha e cansada Hollywood, isso sim, para a qual expor um problema equivale a resolv�-lo.
Tudo que sabemos sobre a fam�lia vizinha - os Mayers - � que eles acabam de comprar a casa e s�o negros. E eles s�o negros com perfeito autocontrole, rapaz.
Quando racistas gritam com ela, a Sra. Mayers n�o grita de volta. Continua a pendurar roupas no varal.
Quando ela vai � mercearia local e o vendedor aumenta o pre�o dos produtos que ela quer comprar (todos os produtos passam a custar US$ 20), ela n�o insiste e sai, demonstrando a esp�cie de estoicismo de que um filme como esse precisa como substituto para o triunfo da dignidade.
J� o Sr. Mayers praticamente n�o tem di�logos. Mas ele � �timo no cortador de grama. Os filhos do casal passam o filme brincando com Nicky, que � ordenado por sua tia a faz�-lo —uma ordem que tamb�m parece se aplicar a Clooney.
A forma pela qual a fam�lia Mayers � retratada n�o � muito diferente da participa��o de Dianne Reeves, cantando jazz, e do uso do depoimento real de Annie Lee Moss em "Boa Noite e Boa Sorte", docudrama que Clooney dirigiu em 2005.
Clooney j� dirigiu seis filmes. Cinco se passam na metade do s�culo passado. E "Suburbicon" explica o motivo. As quest�es raciais s�o um ponto cego para ele. Nenhuma das cenas com os Mayers dura mais de 90 segundos; a maioria delas mal chega aos 15 segundos.
E todas servem apenas como contraponto moral � frivolidade cada vez mais sombria que acontece na casa dos Lodge.
Manohla Dargis percebeu essa desigualdade em sua cr�tica ao filme no "New York Times". O elenco telegrafa as prioridades de "Suburbicon".
Assista ao trailer de 'Suburbicon'
Os atores negros —Karimah Westbrook, Tony Espinosa e Leith Burke— podem n�o ser t�o famosos quanto seus colegas brancos de elenco, mas Clooney n�o lhes d� a oportunidade de demonstrar se s�o igualmente bons.
Em setembro, depois da estreia de "Suburbicon" no Festival Internacional de Cinema de Toronto, Clooney disse a David Sims, da revista "Atlantic", que est� ciente de que sua abordagem � imperfeita.
"Seria muito justo dizer que h� muita gente mais qualificada do que eu para contar a hist�ria dos negros nos sub�rbios de classe m�dia", disse Clooney.
"Existe uma vers�o desse filme que eu gostaria de ver pelo outro lado, que poderia ser mais bem representado por algu�m mais capacitado do que eu para falar sobre isso, e que provavelmente deveria faz�-lo". Clooney prosseguiu: "Creio que minha vers�o fala daquilo que eu sei, a ang�stia branca e o medo de perder o lugar para as minorias".
Ele tamb�m declarou que gostaria de ver uma vers�o da mesma hist�ria dirigida por outro cineasta - por exemplo Ava DuVernay ou Steve McQueen.
Pode bem ser que a arrua�a branca que � mostrada em "Suburbicon" sirva para representar os eventos que os nacionalistas brancos v�m promovendo pelo pa�s.
E talvez dentro desse filme viva uma farsa que leva em conta a indiferen�a dos brancos diante de uma cat�strofe nacional. Mas ningu�m teve a aud�cia de encontr�-la. O filme � a cat�strofe, em lugar disso.
Na era em que a hist�ria se passa, havia dramas como "No Way Out" (1950), de Joseph Mankiewicz, e "Pressure Point" (1962), produzido por Stanley Kramer.
Os dois filmes foram estrelados por Sidney Poitier, e nenhum teme pelo menos tentar encarar a quest�o racial "pelo outro lado". O retrato violento e implac�vel do racismo em "No Way Out", que inclui cenas de arrua�a e agress�o contra os negros, continua a chocar ainda hoje.
S�o filmes t�o quadrados quanto aqueles que Clooney tende a realizar, mas tamb�m s�o trabalhos ousados, por tentarem contemplar o presente, ainda que de modo imperfeito, em lugar de se refugiarem no passado.
Tradu��o de PAULO MIGLIACCI
Livraria da Folha
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