Bem pensado, jogo 'Walden' refaz cen�rio onde Thoreau se isolou
Divulga��o | ||
Em 'Walden', jogadores s�o convidados a ser Henry David Thoreau, a ver pelos seus olhos |
WALDEN, A GAME (muito bom)
QUANTO US$ 18,45 (R$ 58)
ONDE waldengame.com, roda em PC e Macintosh
*
1.
O minimalismo est� na moda. N�o falo da pintura de Frank Stella ou da m�sica de Philip Glass. Uso "minimalismo" no sentido prosaico: a ambi��o de simplificar a vida e a paisagem que a rodeia.
Existem livros que ensinam a arrumar melhor a sala, os arm�rios, at� as cozinhas. Em todas as ruas das grandes cidades existe um centro de ioga, ou de medita��o, para resgatar o homem moderno do seu excesso neuronal.
E um document�rio recente, intitulado "Minimalism: A Documentary About the Important Things", relata a odisseia de dois "yuppies" que abandonaram a "carreira" (e o materialismo associado) para pregarem aos incr�us as virtudes do despojamento –e da vida "com sentido".
Nada disso � novo: a tecnologia avan�a, o tempo acelera –e qualquer ser humano suspira por uma exist�ncia mais "pura" e "liberta". Foi assim no s�culo 19. � assim no s�culo 21. Henry David Thoreau (1817-1862), que nasceu h� 200 anos, sabia do que falava.
Pena que os seus contempor�neos n�o lhe tenham prestado a aten��o devida. O seu "A Desobedi�ncia Civil" � hoje um texto cl�ssico do anarquismo pacifista. Em 1849, foi devidamente ignorado. "Walden", a obra-prima, n�o conheceu melhor sorte em 1854.
E, no entanto, ler ou reler a experi�ncia do autor no bosque, junto ao lago que d� t�tulo ao livro, nunca nos soou t�o familiar. "Viver deliberadamente" era a ambi��o de Thoreau –e o grito desesperado da nossa "sociedade do cansa�o", para usar a express�o feliz do fil�sofo Byung-Chul Han.
2.
Assim se entende a exist�ncia de um jogo baseado em "Walden". Quando soube da bizarria, ri alto: como transformar as medita��es solit�rias de Thoreau em videogame? O meu ceticismo, aten��o, n�o estava na alegada "blasf�mia" do projeto (para mim, n�o existem livros intoc�veis). Estava na impossibilidade dele.
A desconfian�a foi recuando quando soube que o jogo era patrocinado pela National Endowment for the Humanities, institui��o que tudo tem feito para ressuscitar, com a dignidade inerente, a obra completa do autor.
Comprei o jogo e iniciei a experi�ncia. Escrevo "experi�ncia" porque somos convidados a ser Thoreau, a ver o mundo pelos seus olhos, a tocar nos objetos com as suas m�os.
Assista ao trailer oficial do jogo
Assista ao trailer oficial do jogo
� uma escolha feliz: tal como Thoreau escreve nas primeiras linhas de "Walden", a primeira pessoa do singular � uma afirma��o epistemol�gica. N�o existe ningu�m que Thoreau conhe�a t�o bem como ele pr�prio. Donde, ele pr�prio ser� o tema da sua narrativa.
Ent�o aceitei ser Thoreau. Caminhei pelo bosque. Fui recolhendo objetos, contemplando as �rvores e reconhecendo a cabana incompleta que esperava por mim.
Entrei em casa. Mas, antes de entrar, recebi e li a carta da minha irm� Sophie a desejar-me boa sorte.
Anoiteceu. Sozinho, junto a uma modesta mesa de madeira, remendei um terno velho � luz de uma lanterna. E antes de me deitar no catre, reli as p�ginas do meu di�rio.
O dia raiou. Acordei, levantei-me. Outra carta chegou: era Ralph Waldo Emerson, fil�sofo transcendentalista com quem mantenho uma amizade atribulada. Para limpar os pensamentos, fui at� o lago Walden. No regresso � casa, aqueci-me na fogueira.
Como Thoreau escreveu, n�o estamos propriamente s�s quando escutamos "a dignidade da Natureza". Eu escuto tudo: o rumor da �gua, o vento entre os ramos, o eco dos p�ssaros.
A leitura ajuda. Li algumas p�ginas da "Il�ada", o poema hom�rico que Thoreau levou com ele para o bosque em 1845. E senti a passagem do tempo nas diferentes tonalidades da luz.
Jogamos "Walden" e percebemos que "Walden" n�o � propriamente um jogo. N�o h� um objetivo definido, um destino triunfal. E as mensagens que continuamente nos chegam –quando lemos uma carta, as p�ginas de um livro, as anota��es do di�rio– repetem o ad�gio: "Take your time". Um jogo � competitivo. "Walden" � contemplativo. Thoreau iria gostar.
3.
N�o vale a pena dizer o �bvio: nada substitui a leitura do cl�ssico. Ali�s, quando o assunto s�o as grandes obras, nada substitui a leitura das mesmas.
Mas o jogo, inteligentemente pensado e visualmente elegante, n�o procura substituir coisa alguma. � apenas uma homenagem a Thoreau e ao seu texto maior, procurando recriar aquele que me parece ser o tema central de "Walden": como habitar o tempo sem sermos usados e abusados por ele?
Thoreau n�o era um estoico, ao contr�rio do que Emerson escreveu no elogio f�nebre. Mas, quando lemos a primeira carta do estoico S�neca ao seu disc�pulo Luc�lio, encontramos uma medita��o sobre o tempo que Thoreau subscreve: "Reclama o direito de dispor de ti, concentra e aproveita todo o tempo que at� agora te era roubado, te era subtra�do, que te fugia das m�os". E, mais � frente, S�neca prossegue: "S� o tempo � mesmo nosso". (Uso a tradu��o para o portugu�s que J.A. Segurado e Campos publicou na Funda��o Calouste Gulbenkian.)
Eis a premissa de Thoreau: viver dois anos e dois meses junto ao lago Walden para usar livremente o tempo que o trabalho, a sociedade e a opini�o tir�nica de terceiros constantemente nos rouba. Viver uma "vida independente", em suma, o que implica um exerc�cio de simplifica��o. Quantos dos nossos desejos n�o s�o sup�rfluos e nocivos? E at� que ponto as reais necessidades humanas n�o s�o mais elementares do que pensamos?
Duzentos anos depois do nascimento de Thoreau, essas s�o as perguntas que permanecem com o homem contempor�neo: um ratinho de laborat�rio que pedala todos os dias, medrosa e freneticamente, para chegar a lugar nenhum.
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