'Que gay o caralho. Eu sou um ser humano', diz Ney Matogrosso
Homenageado do 28� Pr�mio da M�sica Brasileira, em meio � turn� mais bem-sucedida de sua carreira ("Atento aos Sinais", iniciada em 2013) e com in�meros projetos paralelos, tanto na m�sica quanto no cinema, Ney Matogrosso, 75, est� claramente numa fase luminosa.
Em momentos como este, � f�cil esquecer que o cantor trilhou um caminho pedregoso at� se estabelecer no c�none da MPB. Se teve sucesso imediato com o grupo no qual estreou, o Secos e Molhados (em 1973), quando partiu para a carreira solo, dois anos depois, Ney apanhou.
Da direita "careta", da esquerda "machista pra caralho", dos cr�ticos "implac�veis" que n�o aceitavam sua ousadia musical e visual. E de compositores que o consideravam extravagante demais para suas obras. Ney se lembra, mas prefere n�o nomear os algozes. "Tudo isso ficou pra tr�s", diz hoje.
Para superar os ataques, contou com ch� do Santo Daime e com o perene reconhecimento do p�blico. O mesmo que ter� a chance de v�-lo subir ao palco do Teatro Municipal do Rio, na noite desta quarta (19), para cantar e ouvir convidados como Chico Buarque e Ivete Sangalo cantarem as can��es que ele tornou conhecidas.
Foi ap�s um ensaio para o Pr�mio da M�sica Brasileira que Ney recebeu a Folha em sua cobertura, no Leblon, zona sul do Rio, na noite de segunda (17). Morador da cidade desde 1974, diz que ela est� em "decad�ncia total".
Cansado, mas sol�cito, conversou sobre a homenagem que receber�, sobre seu passado e seu futuro. Falou tamb�m de pol�tica, com a qual se desiludiu desde o esc�ndalo do Mensal�o, no primeiro mandato de Lula –candidato em quem votou em todas as elei��es at� ali.
Identificou "uma direita careta no poder" e disse que se alinha aos gritos de "fora, Temer" que vez por outra ecoam em seus shows –mas recusa-se a fazer coro.
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Folha - Como voc� recebeu essa homenagem do Pr�mio da M�sica Brasileira?
Ney - N�o � muito a minha expectativa na vida uma coisa dessas. Essas homenagens s�o sempre muito cansativas, porque voc� tem de estar atuante dentro da hist�ria. E eu acho muita exposi��o, fico meio retra�do. N�o � algo que eu anseie, um filme da minha vida, ser enredo de escola de samba, n�o anseio por essas coisas. Gosto do reconhecimento que ocorre naturalmente nos shows.
Por parte do p�blico. E o da cr�tica, lhe importa?
N�o mais. Me importei muito no come�o, quando tive as piores. S� que eu acreditava no que tinha feito, achava que era bom. Achei muito injusto. Eu estava me apresentando independente do Secos e Molhados, e foram implac�veis. Naquele exato momento, me desvencilhei das cr�ticas. N�o desconsidero, mas n�o fa�o nada pensando nelas. Fa�o o que acho que devo fazer.
Acha que havia algo de preconceituoso nas cr�ticas?
Talvez. Eu fiquei dois anos sem ter meu nome publicado no "Jornal do Brasil" porque havia um editor que dizia que n�o publicava nome de travesti. Eu nunca fui um, nunca me considerei um travesti. Sou do sexo masculino, gosto de ter pau, n�o sei de onde ele tirou isso.
Voc� j� reavaliou seus trabalhos, com o tempo?
Tem uns de que gosto mais, outros, menos. O "Destino de Aventureiro" (1984), por exemplo, era uma sobra do "Pois �" (1983). Gosto de uma faixa ou outra, mas n�o do que resultou o disco. Gosto muito de "As Apar�ncias Enganam" (1993), com a Aquarela Carioca, � um dos meus preferidos. Gosto muito de "Seu Tipo" (1979), que foi o disco que me deu meu primeiro pr�mio, pela Associa��o Paulista de Cr�ticos de Artes.
Essa homenagem � tamb�m um reconhecimento dos seus colegas de trabalho. Como foi isso ao longo de sua carreira?
Tamb�m mudou, por parte de alguns compositores. Houve um momento que alguns me diziam "eu n�o sei fazer m�sica pra cima". Eu respondia "mas n�o estou pedindo m�sica 'pra cima', estou pedindo m�sica sua". Outro, me pediu para ligar depois, eu liguei e ouvi ele dizer "diz pra ele que n�o estou". Acho que tinha um pouco de preconceito tamb�m, mas tudo isso ficou pra tr�s. Houve um momento em que eu entendi isso, que cada vez que eu lembrava de uma coisa dessas, que tinha sido desagrad�vel para mim, eu sentia que estava preso. Eu disse: "Como � que voc� pode estar preso a opini�es de 30 anos atr�s?". E me livrei disso.
Quando foi esse momento?
Quando tomei o Daime [ch� alucin�geno da planta Ayahuasca], no final dos anos 1980. O Daime conseguiu me liberar disso.
Voc� ainda usa?
Tenho, mas tomo uma colher s�. N�o tem regularidade, quando eu t� a fim, tomo uma colher, para ficar dentro da energia da bebida, que pra mim foi uma experi�ncia muito positiva.
Qual a import�ncia desse tipo de premia��o?
Em termos de mercado, n�o faz diferen�a. Nos Estados Unidos, sim, mas aqui n�o temos essa mentalidade, � muito restrito ao acontecimento, n�o muda para o p�blico. Em termos pr�ticos, na carreira da pessoa, n�o muda nada. Talvez para um iniciante d� um impulso.
H� uma gera��o de novos artistas que levam a sexualidade ao palco. Voc� os conhece?
Conhe�o alguns, o Liniker, o Rico Dalasam, As Bahias e a Cozinha Mineira, o N�o Recomendados. Mas sei que tem muitos mais. Acho interessante que as pessoas estejam assim, porque � uma hora muito estranha, em que h� uma direita careta no poder, e essas pessoas pipocando no Brasil. Acho interessante que as pessoas se manifestem, travestis, transexuais, todos, n�o importa.
Quando a sexualidade se mistura com a parte art�stica, n�o h� o risco de ser panflet�rio?
Olha, panflet�rio, numa inst�ncia qualquer, �. � uma pessoa se expressando com liberdade, isso � panfleto, eu fui panfleto de mim mesmo. S� que eu sempre alertei: n�o se satisfa�am comigo, com a minha manifesta��o. Voc�s t�m o direito de ser quem s�o. Sempre falei isso e demorou muito para eu ver isso, eu surgi em 1973 e agora � que a gente v� esse tipo de coisa acontecendo. E, de uma outra maneira, n�o � a minha, porque eu gosto de ser do sexo masculino. Nunca quis ser mulher nem ocupar o lugar de mulher. Sou um homem que apenas n�o respeitou os limites, que transita com liberdade entre uma ponta e outra do espectro.
E como a sua sexualidade se misturou com a sua arte?
Quando eu surgi, tinha 30 anos, os horm�nios jorravam. N�o tinha controle, estava exposto em cima de um palco, seminu. Isso foi pensado, queria ser um desaforo contra a ditadura, j� que n�o pegava em armas. Eu me requebrava porque achava que podia, Elvis Presley j� tinha se requebrado l�, por que eu n�o podia aqui no Brasil? Nunca respeitei essa quest�o de masculino e feminino porque queria transitar com liberdade, embora sempre tenha dito que sou do sexo masculino e gosto. Tenho peito cabeludo e gosto, tenho pau e gosto. Mas isso n�o me impede de transitar.
Essa busca por desafiar, por ser desaforado, ficou para tr�s?
N�o � mais necess�rio. Se bem que, para a caretice que est� se instalando agora, eu devo ser uma afronta ainda.
Teme ver Bolsonaro presidente?
Ele n�o ser� presidente nunca. N�o acredito que o Brasil d� esse passo.
Voc� tem acompanhado a pol�tica?
Acompanho assim, o que eu vejo: o presidente [Michel Temer] est� por um triz de ser sa�do do poder e est� comprando generosamente os votos dos deputados para n�o sair. Mas a coisa est� t�o estranha que, apesar do dinheiro gasto com isso, ele ainda pode sair. Porque o dinheiro n�o � suficiente, o jogo � muito s�rdido, as pessoas s�o venais: se vendem, mas n�o t�m compromisso com aquele que as comprou.
Voc� foi contra ou a favor do impeachment de Dilma?
Eu achava que estava muito mal. Ela fez um p�ssimo governo, que acabou nessa hist�ria. O Lula a colocou para manter aquecida a cadeira dele. Eu votei nele v�rias vezes, contra o Collor, contra o Fernando Henrique, s� n�o votei no segundo mandato. Porque no primeiro estourou o Mensal�o. E eu n�o podia acreditar que ele n�o soubesse de nada. A� te confesso que me decepcionou. Foi a �ltima vez que acreditei em algu�m. Desde ent�o, anulo meu voto com a maior tranquilidade.
Voc� n�o se alinha nem � esquerda nem � direita?
N�o. N�o tenho essa coisa partid�ria, estou mais preocupado com o ser humano. Se quiser me definir, diga que eu sou um humanista. Primeiro, n�o acho que existe esquerda e direita, a meta � a mesma para ambos os lados: a chave de cofre e o poder. N�o tenho mais ilus�es. Antigamente eu te diria que era de esquerda. At� que, quando eu achei que a esquerda iria me compreender, porque eu estava tentando cariar a ditadura, a esquerda me descia o cacete. N�o entenderam que eu podia ser �til.
Desceram o cacete por qu�?
Por preconceito, n�o � isso? A esquerda n�o � machista pra caralho?
Nos seus shows h� coro de "fora, Temer"?
Tem. A� eu canto "O Tempo N�o Para" para eles.
Querendo dizer o qu�?
� uma m�sica de 1988, mas � atual at� hoje. Tudo passa, voc� n�o pode achar que as coisas s�o definitivas. Tudo � circunstancial, est� em movimento. Eu tenho essa percep��o da vida.
Mas os gritos o incomodam?
Eu apenas n�o grito. Acho que n�o me compete. Mas aceito que gritem. Isso est� em toda parte, � um desejo das pessoas.
Seu, n�o?
� um desejo meu, mas n�o acho que eu deva fazer isso. Eu t� ali para uma outra coisa. N�o sou obrigado, nem acho que minha fun��o ali seja essa. Aceito que falem, mas eu n�o falo.
Como s�o suas rela��es com pol�ticos?
S� fiz campanha para o Fernando Henrique [Cardoso], quando ele foi candidato a senador [1986]. Cantei tr�s m�sicas em um com�cio dele, n�o cobrei nada. E sabe o que eu ouvi quando sa� [do palanque]? Ele entrou e disse que minha presen�a era uma mostra de que ele n�o tinha preconceito contra minorias. Mas n�o fui l� como representante de minorias, fui como um brasileiro que acreditava nele.
Voc� se considerou em algum momento representante de uma minoria?
Eu n�o. Nunca peguei essa bandeira, n�o me interessa. Acho que eu sou �til assim, falando, conversando. Teve um encontro internacional gay no Rio, queriam que eu fosse presidir. Eu disse que n�o, n�o penso assim. A� foi o Renato [Russo]. T� certo, ele � quem tinha de ir, a cabe�a dele era assim. Eu n�o defendo gay apenas, defendo �ndios, fiz um v�deo recentemente pedindo a demarca��o de terras. Defendo os negros, que est�o na mesma situa��o que viviam nas senzalas, est�o presos aos guetos.
Me enquadrar como "o gay" seria muito confort�vel para o sistema. Que gay o caralho. Eu sou um ser humano, uma pessoa. O que eu fa�o com a minha sexualidade n�o � a coisa mais importante na minha vida. Isso � um aspecto, de terceiro lugar.
E o que � o mais importante na sua vida?
Ter car�ter, ser uma pessoa honesta, de princ�pios, que trata bem as outras. Ser uma pessoa afetuosa, amorosa. Isso � mais importante do que com quem eu trepo. Sou benquisto e recebo isso nas ruas, das pessoas.
Quais s�o seus pr�ximos projetos?
Estou pensando ainda, selecionando repert�rio, n�o sei exatamente. Tem Milton [Nascimento], Chico [Buarque], S�rgio Sampaio. Mas claro que n�o vai ficar restrito a esses tr�s. J� tenho m�sicas in�ditas. Quero que tenha uma do Roberto Carlos tamb�m.
H� uma expectativa em torno do show que voc� vai fazer com a Na��o Zumbi no Rock in Rio.
Eu baixei a bola disso, n�o � o que virou, a volta do Secos e Molhados. Eu queria ter feito o "Atento aos Sinais" [disco e turn�] com a Na��o, mas eles estavam comprometidos com a Marisa Monte [parte da banda participou da �ltima turn� da cantora]. Toquei meu barco e a� me convidaram para fazer o show no palco Sunset com a Na��o. Eu ofereci cantarmos algumas m�sicas do Secos e Molhados, mas n�o � a volta da banda. Vamos cantar cinco, e tem repert�rio deles tamb�m, al�m de Jackson do Pandeiro. J� tivemos dois encontros e come�aremos a ensaiar regularmente em setembro.
Voc� est� em uma fase muito produtiva, n�o?
Em agosto eu estou de f�rias, n�o quero que me falem em trabalho. Estou trabalhando que nem um animal de carga, est� pesando demais, � muita coisa ao mesmo tempo. Tenho shows do "Atento aos Sinais" marcados at� dezembro.
J� � sua turn� mais longa?
Sim. Vai acabar uma hora, mas n�o sei se em dezembro. Em fevereiro de 2018 chega aos cinco anos. Como posso cortar uma coisa que faz esse sucesso? S� se eu fosse louco. Nunca fiquei tantos anos fazendo um show lotado por toda parte que eu passo.
Por que esse sucesso?
N�o fa�o ideia.
Voc� encerra as turn�s por falta de demanda, ent�o?
Quando come�o a perceber que a coisa j� n�o � como era, eu paro. N�o vou esperar ficar decadente para acabar. Mas esse, n�o posso parar. N�o se faz isso, voc� tem que respeitar essas coisas. Numa hora de crise no pa�s, eu lotando todo canto que passo. Acabei de fazer pela segunda vez no Espa�o das Am�ricas, em S�o Paulo, 3.000 lugares esgotados com 20 dias de anteced�ncia. Fiz Portugal pela terceira vez, fui duas vezes ao Uruguai, duas � Argentina, tenho viajado muito.
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28� PR�MIO DA M�SICA BRASILEIRA
QUANDO quarta (19), �s 21h
ONDE Teatro Municipal Do Rio (pra�a Floriano, S/n�, Centro)
QUANTO R$ 100 a R$ 300
CLASSIFICA��O livre
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