Kendrick Lamar se supera em disco e mostra que rap ainda � relevante
Carlo Allegri/Reuters | ||
O rapper Kendrick Lamar se apresenta no festival Coachella, na Calif�rnia |
Pode parecer apenas mais um disco de rap. N�o �. Com o lan�amento de "DAMN.", na �ltima sexta, e o show de encerramento no festival Coachella, domingo (16), o rapper americano Kendrick Lamar produz algumas constata��es.
Na era do single, em que artistas e p�blico vivem de sucesso em sucesso, um �lbum volta a ser aguardado, comentado e recebido como obra completa. T�tulo, arte da capa, ordem das m�sicas, participa��es. Tudo foi exaustivamente discutido por f�s e ind�stria por semanas (talvez meses) antes da estreia.
Al�m de expectativa, o lan�amento do quarto �lbum de est�dio suscitou diversas teorias. A mais forte pregava a exist�ncia de um segundo volume do disco, a ser lan�ado no domingo de P�scoa, em alus�o � ressurrei��o de Cristo.
Todo o "buzz" em torno do artista n�o � fruto de habilidade midi�tica. Ele n�o conta dinheiro em v�deos, n�o namora estrelas (ficou noivo da namorada de col�gio), n�o alimenta redes sociais –a conta no Instagram tem 4,6 milh�es de seguidores e duas fotos. Em 2017, um artista ainda pode estar no centro das aten��es por causa de sua m�sica. E s�.
Ap�s muito tempo sem renova��es est�ticas e tem�ticas, o rap dos EUA mostra que pode ser inovador, questionador e relevante politicamente. Justi�a seja feita, Lamar vem nessa toada desde 2012, quando "Good Kid, M.A.A.D. City" o p�s como um dos mais intrigantes MCs de sua gera��o.
Sob a tutela de Dr. Dre (rapper, ator e um dos maiores produtores da hist�ria do hip hop), vendeu mais de 1 milh�o de c�pias narrando a juventude em Compton, no sub�rbio de Los Angeles –ber�o dos pais do gangsta rap, o grupo N.W.A. (1986-1991), e palco de diversos conflitos raciais.
Aos 25 anos, o garoto introvertido mostrava, no segundo disco, ser um rimador poderoso e mestre no "storytelling" (letras que narram hist�rias).
Esses predicados levaram Lamar ao topo em 2015, quando "To Pimp a Butterfly", o terceiro disco, virou trilha sonora do movimento Black Lives Matter, levou sete Grammys e um f� fervoroso, Barack Obama, que elegeu "How Much a Dollar Cost" como sua m�sica favorita naquele ano.
PASSO SEGUINTE
A ansiedade que cercou o lan�amento de "DAMN." � sintoma da t�pica s�ndrome do passo seguinte, pela qual passam artistas de todos os matizes. Lamar precisava mostrar que h� mais da subst�ncia e consist�ncia de onde haviam sa�do os trabalhos anteriores.
E, maldi��o, ele conseguiu. Para ouvidos menos acostumados ao ritmo e poesia (rap, ou rhythm and poetry), parece dif�cil perceber a evolu��o. Mas h� maneiras objetivas de faz�-lo: os "rhyme schemes" (esquemas r�micos, como na poesia) surgem com maior complexidade, em versos mais longos, com rimas multissil�bicas.
A varia��o de "flow" (jeito de rimar) � maior, o controle do f�lego e as acrobacias que faz com a voz s�o ainda mais presentes. Lamar se apresenta como um atleta da palavra, como j� se referiram a ele.
J� a tem�tica n�o � exatamente uma surpresa. O duelo com a pr�pria consci�ncia antes e depois da fama � algo esperado –o garoto pobre de Compton versus o artista milion�rio– aparece em todo o disco. Autoan�lise e percep��o cr�tica de si n�o s�o novidade. Ele j� versou sobre depress�o e suic�dio (escute "u", de "To Pimp a Butterfly").
A religiosidade � outro tema j� explorado, mas que ganha contornos mais firmes.
� natural a expectativa sobre o que ele, um dos mais politizados de sua gera��o, tem a dizer dos EUA de Trump. A maneira com que fez isso n�o poderia ser mais esperta: em vez de bradar contra o inimigo, colocou-o na vitrine ao samplear uma frase do comentarista da Fox News Geraldo Rivera. "O hip hop causou mais danos � juventude americana que o racismo."
SONORIDADE
Lamar tamb�m subverte a sonoridade que construiu at� ent�o –baseada em free jazz, soul, funk e spoken word.
Em "DAMN.", abra�a o trap, dissid�ncia que leva o hip hop para um ambiente eletr�nico, mas se mant�m fiel ao soul dos anos 1970 e � blaxploitation, ecoando artistas como Chi-Lites e Curtis Mayfield.
Na compara��o, esse � um disco mais "f�cil" de ouvir, mais pop e r&b, menos abrasivo que os anteriores. As participa��es sublinham isso.
A essa altura, Lamar poderia ter reunido o PIB do hip hop –Jay Z, Kanye West, Drake. Em vez disso, trouxe s� tr�s convidados: Zacari, um desconhecido cantor e multi-instrumentista, Rihanna, rimando de igual para igual e n�o s� como "cantora de refr�o" (como costuma acontecer quando mulheres s�o convidadas para participa��es), e"� o U2.
Este causou disc�rdia quando a setlist vazou. Seriam Kendrick Lamar e Bono Vox juntos o extremo do bom-mocismo desde Batman e Robin?
De novo, Lamar foi mais sagaz do que a audi�ncia previu. � preciso algum esfor�o para reconhecer Bono em "XXX.". Est� l�, mas de um jeito t�o "cool" que passa batido.
Fazer Bono Vox soar bem. Essa talvez tenha sido a contribui��o mais inestim�vel de Kendrick Lamar � m�sica.
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