Poeta Ferreira Gullar morre de pneumonia aos 86 anos no Rio
Ferreira Gullar, poeta, ensa�sta, cr�tico de arte, tradutor, bi�grafo e colunista da Folha desde 2005, morreu por volta das 10h deste domingo (4), aos 86 anos. Sua neta, Celeste, confirmou a morte. Ele estava internado no hospital Copa D'Or, no Rio de Janeiro, h� cerca de 20 dias devido a insufici�ncia respirat�ria.
Segundo Maria Am�lia Mello, amiga e editora de Gullar na Jos� Olympio e tamb�m de seu �ltimo livro, "Autobiografia Po�tica e Outros Textos" (Editora Aut�ntica), o poeta morreu de pneumonia.
Com grande independ�ncia, quase sempre remando contra a corrente no poder, Gullar frequentou diferentes regi�es de um amplo espectro ideol�gico. Renovador da linguagem po�tica e te�rico da vanguarda, anos mais tarde ele enxergaria com olhos severos os rumos da arte contempor�nea. Militante comunista, fez-se um rigoroso tribuno contra a esquerda no poder desde os primeiros momentos do governo Lula.
Sua fisionomia angulosa, cheia de vincos expressivos, fez a alegria dos designers gr�ficos, que a reproduziram ampliada em in�meras capas de livros e revistas. Ao vivo, o corpo magro e fr�gil contrastava com o vigor escuro do olhar, o nariz proeminente que lhe dava um perfil de �ndio andino, os �culos met�licos dominando o rosto de fora a fora, a espessura das sobrancelhas, o gesto constante de levar as m�os � cabe�a e ajeitar os cabelos muito lisos, brancos e compridos, ou ent�o enxugar com o canto dos dedos a saliva acumulada nos l�bios grossos.
Nascido em 10 de setembro de 1930, o maranhense Jos� Ribamar Ferreira se espraiou em praticamente todos os campos da cultura, da poesia de vanguarda � can��o popular, da teoria est�tica ao jornalismo, da ilustra��o de livros infantis � teledramaturgia. Quase sempre, com forte �nfase pol�tica. Para se distrair, entregava-se � reprodu��o de quadros de Mondrian e outros de seus mestres europeus, fazia colagens com recortes de revistas ou traduzia poesia. Est� entre os primeiros nomes da extensa lista de biografias que ainda precisam ser escritas no Brasil.
Filho do comerciante Newton Ferreira e da dona de casa Alzira Goulart, que lhe inspiraria o nome liter�rio, Gullar publicou seu primeiro livro em edi��o do autor em sua S�o Lu�s natal, em 1949. "Um Pouco Acima do Ch�o" n�o teria lugar nas futuras edi��es de obra completa organizadas pelo poeta: trata-se, diz ele, de "um tateio inicial", "um livro ing�nuo".
O seu segundo trabalho, de 1954, tamb�m saiu em edi��o do autor, mas de ing�nuo n�o tinha absolutamente nada. "A Luta Corporal" foi a fagulha de um novo tipo de escrita que nos anos seguintes mudaria as no��es tradicionais de verso, p�gina, livro de poesia —em resumo, a pr�pria poesia, tal como a entend�amos at� ent�o.
Escrito solitariamente, quando o autor j� vivia no Rio (desde 1951), mas ainda tinha poucas conex�es com o mundo liter�rio, o livro soava como um salto radical em todas as dimens�es —sonoras, gr�ficas, sem�nticas— e todas as possibilidades que a palavra impressa poderia oferecer.
"Diagramado e editado por mim, ele refletia a preocupa��o com a utiliza��o do espa�o em branco na estrutura��o espacial dos poemas, como tamb�m na titulagem e no uso da p�gina em branco, feito camadas de sil�ncio acumuladas nas p�ginas", recordaria Gullar, anos mais tarde, em seu livro "Experi�ncia Neoconcreta" (Cosac Naify), volume que recupera os seus anos heroicos do neoconcretismo, ao lado dos artistas pl�sticos Lygia Clark, H�lio Oiticica e outros amigos. Segundo ele, "A Luta Corporal" se encerrava com a "implos�o da linguagem". "Mu gargantu / FU burge / MU gu�lu, Mu / Tempu - PULCI", escreve ele numa das passagens mais cheias de escombros.
"Naquele tempo eu n�o tinha fam�lia, nem uma vida regular, vivia sozinho num quarto perto da pra�a da Cruz Vermelha [no Rio]", contaria o autor, anos mais tarde, � equipe dos "Cadernos de Literatura Brasileira". "Era uma vida desligada da realidade comum de todos. Eu vivia, ent�o, 'num clima de aventura'."
Entre seus primeiros leitores, estava o escritor Oswald de Andrade, que apareceu de surpresa para cumprimentar Gullar no dia de seu anivers�rio, em 1953. O autor de "Poesia Pau-Brasil" tinha lido "A Luta Corporal" ainda nos originais e se impressionou pelo vigor daquele jovem poeta maranhense.
O livro tamb�m o aproximou de tr�s personagens-chave: os irm�os Haroldo e Augusto de Campos e D�cio Pignatari. Conta Gullar que os tr�s poetas entraram em contato com ele por carta, depois de terem lido "A Luta Corporal". Augusto foi ao Rio para um encontro com Gullar, no qual teria manifestado insatisfa��o com o estado da poesia brasileira naquele momento.
A correspond�ncia inaugurada ali gestou uma das mais importantes revolu��es art�sticas do s�culo 20 no Brasil, e tamb�m uma curta, por�m f�rtil, colabora��o entre o grupo dos paulistas e o dos cariocas. N�o demorou a nascer tamb�m uma das mais duradouras disputas intelectuais do pa�s, que come�ou em torno da paternidade da aboli��o do verso tradicional. Isto �, quem foi o primeiro a afirmar que um poema j� n�o precisava mais ser organizado em linhas para ser um poema?
Gullar e os paulistas estavam juntos, na 1� Exposi��o Nacional de Arte Concreta, realizada em S�o Paulo em dezembro de 1956. Em fevereiro de 1957, quando foi inaugurada no Rio, Gullar publicou no "Suplemento Dominical do Jornal do Brasil" um artigo em resposta a um manifesto de Haroldo de Campos em que explicitava as diferen�as que enxergava entre o seu grupo, o dos "cariocas", e os dos paulistas. Para Gullar, Haroldo defendia a subordina��o da poesia a equa��es matem�ticas. "Considerando que aquilo era invi�vel", registraria Gullar, anos mais tarde, "telefonei a Augusto, dizendo que n�o podia subscrever semelhante teoria. Sua resposta foi que eu ent�o procedesse como me parecesse melhor, pois eles n�o desistiriam daquela tese."
Agora conhecidos respectivamente como os "neoconcretos" e os "concretos", os dois grupos passariam a reivindicar o pioneirismo na dissolu��o do verso e na explora��o das dimens�es concretas da palavra. A disputa, que acompanharia os contendores ao longo da vida inteira, n�o � facilmente explic�vel, mas influenciou as gera��es de artistas subsequentes e ecoou, por exemplo, no Tropicalismo de Caetano Veloso.
"Lembro-me que defendia a tese de que a quest�o fundamental da nova poesia n�o era 'criar um novo verso' (como escrevera Haroldo na ocasi�o) e, sim, 'superar o car�ter unidirecional da linguagem, rompendo com a sintaxe verbal'", rememora Gullar em "Experi�ncia neoconcreta". "Esta tese foi aceita por eles e de algum modo contribuiu para que buscasse solu��o no poema visual, constru�do geometricamente no espa�o da p�gina."
Mais adiante, o poeta reconhece: "Sem qualquer d�vida, o contato com Augusto de Campos e com suas experi�ncias po�ticas me ajudou a sair do impasse a que chegara com 'A Luta Corporal'".
Aquele encontro no Rio, em 1955, ainda renderia, quase 60 anos depois, uma agressiva troca de farpas entre Gullar e Augusto de Campos, relativa �s afirma��es do maranhense de que foi ele quem apresentou aos irm�os Campos a poesia de Oswald de Andrade, refer�ncia central para os concretos. Em artigos publicados na Folha, ambos reconstitu�ram em min�cias o encontro, realizado no restaurante Spaghettil�ndia.
SUPLEMENTO DOMINICAL DO JB
Seja como for, a influ�ncia m�tua entre os concretos e os neoconcretos � ineg�vel e teve importantes desdobramentos na poesia e na teoria est�tica brasileira. Pignatari e os Campos deram prosseguimento � poesia concreta no grupo Noigandres; Gullar ganhou destaque como cr�tico e te�rico do grupo carioca, em seus artigos publicados no "SDJB".
Desde 1955, Gullar estava engajado no projeto do "Suplemento Dominical" do "Jornal do Brasil", considerado um marco do jornalismo cultural brasileiro tanto em termos de design gr�fico —quem fazia a diagrama��o e ilustrava era o artista pl�stico Amilcar de Castro— como de texto. A turma do "SDJB" era o correspondente, no jornalismo e na arte de vanguarda, do �mpeto criativo de Jo�o Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes na cria��o da Bossa Nova.
O caderno levou a sensibilidade da vanguarda carioca para as p�ginas de um jornal dos mais tradicionais: era uma esp�cie de protetorado do grupo neoconcreto, com Gullar e pesos-pesados como Janio de Freitas, Reinaldo Jardim, Franz Weissman, Lygia Clark e Lygia Pape.
No "SDJB" Gullar publicou textos centrais como o "Manifesto Neoconcreto" e a "Teoria do N�o Objeto" (1959), pequeno ensaio que alguns colegas de Gullar coassinaram, no qual s�o antecipadas quest�es centrais da arte contempor�nea nas d�cadas vindouras, n�o apenas no Brasil, mas em n�vel mundial: a obra de arte que s� se torna arte com a participa��o ativa do espectador, o "n�o objeto".
Naquele ano, nasceram obras que ilustram o pioneirismo de seu autor: os livros-poema, os poemas espaciais e o "Poema enterrado" —um buraco cavado no terreno da casa do pai do artista H�lio Oiticica, com cubos de diferentes cores e tamanhos que o espectador podia manipular. Debaixo do menor dos cubos, havia um quadrado com a palavra "rejuvenes�a". Uma inunda��o, por�m, inviabilizou a inaugura��o, e o poema s� foi exibido ao p�blico em maio �ltimo.
Em 1963, ele ingressou no Centro Popular de Cultura, da UNE (Uni�o Nacional dos Estudantes), quando assumiu uma nova postura liter�ria, em busca de um arte de interven��o pol�tica e social. No ano seguinte, torna-se presidente do CPC.
POEMA SUJO
Se o "clima de aventura" de sua vida no Rio tinha sido determinante para escrever "A Luta Corporal", as aventuras solit�rias do ex�lio devolveram Gullar � cria��o po�tica radical, sem as amarras da poesia engajada. Em 1975, ele publicou "Dentro da Noite Veloz", um dos mais importantes livros de poesia da d�cada. No ano seguinte, Gullar comp�e o "Poema Sujo", seu poema mais conhecido e �cone da resist�ncia � ditadura.
No embalo do "Poema Sujo", do sinal verde de Golbery e de sua absolvi��o no processo policial-militar que o levara a deixar o Brasil, Gullar decidiu se arriscar a retornar —n�o sem tomar algumas precau��es, como convocar a Associa��o Brasileira de Imprensa (ABI), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Sindicato dos Jornalistas para acompanhar seu desembarque.
Por volta de oito horas da noite do dia 10 de mar�o de 1977, o poeta pousou no aeroporto do Gale�o, no Rio. Recebido por uma multid�o de amigos e jornalistas, n�o foi detido —mas no dia seguinte seria intimado pela Pol�cia Mar�tima. Passou o fim de semana nas m�os de policiais, foi levado de um por�o da repress�o para outro, tiraram-lhe a roupa e o pressionaram a responder sobre "a escola de subvers�o" que frequentara em Moscou. Foi libertado ap�s uma forte mobiliza��o de amigos.
Pouco depois, ao pedir a seu advogado que sacramentasse no Superior Tribunal Militar a extin��o do processo movido contra si, Gullar descobriu que, nos autos, o Jos� Ribamar Ferreira procurado era outro: um l�der campon�s, tamb�m maranhense, que, ao contr�rio do seu hom�nimo poeta, abra�ara a luta armada.
CONSAGRA��O
Se � certo que Ferreira Gullar, ap�s cair na clandestinidade em 1970, percebendo que mais cedo ou mais tarde iria parar na cadeia, voltou ao pa�s na condi��o de artista consagrado, ele s� pode desfrutar a consagra��o com a abertura pol�tica, a partir de 1978, quando o AI-5 perdeu a validade, e 1979, quando passa a valer a Lei de Anistia. Naquele mesmo ano, sua voz anasalada e met�lica ganhou a forma de LP no �lbum "Antologia Po�tica", com m�sica de Egberto Gismonti, e Bibi Ferreira montou a primeira pe�a que Gullar assinou sozinho, "Um Rubi no Umbigo". Em 1980, quando fez 50 anos, teve sua obra po�tica reunida pela primeira vez na edi��o "Toda Poesia" e lan�ou "Na Vertigem do Dia", sua primeira colet�nea de poemas desde "Poema Sujo".
A convite de Dias Gomes, seu ex-camarada de Partid�o, Gullar passou a integrar o n�cleo de teledramaturgia da TV Globo, tendo escrito roteiros para s�ries como "Carga Pesada" e para a novela "Araponga". Nos anos 1980 e 90, o trabalho na TV dividiria o tempo do poeta com a publica��o de livros de poemas, ensaios, tradu��es e cr�nicas. Escreveu letras para uma d�zia de can��es: tem parcerias com Caetano Veloso ("Onde Andar�s"), Milton Nascimento ("Bela bela") e Fagner (o hit "Borbulhas de Amor"). Entre 1992 e 1995, presidiu o Instituto Brasileiro de Artes e Cultura (Ibac), nome que Gullar trocaria pela antiga denomina��o do �rg�o, Funarte.
O retorno a uma interven��o permanente no debate cultural e pol�tico viria com for�a em 2005, quando passou a assinar uma coluna na "Ilustrada". Relida hoje, a coluna de estreia, "Resmungos", revela uma impressionante coer�ncia do colunista nos mais de 11 anos que viriam pela frente. O autodeclarado "cronista bissexto" anuncia que vai escrever sobre pol�tica, "que n�o exige muita especializa��o", e arte, assunto sobre o qual "at� j� escrevi livros", ironiza. E, logo de sa�da, fustiga cr�ticos e obras de arte contempor�nea. De fato, espezinhar os governos petistas, ainda no auge do lulismo, e implicar com artistas, curadores e cr�ticos seriam seus esportes prediletos nas p�ginas da Ilustrada.
(A coluna ainda serviria, de vez em quando, como um raro espa�o confessional: Gullar valeu-se dela para combater causas que eram consenso nos meios de esquerda, como a lei que dificultou a interna��o de doentes mentais e as campanhas pela legaliza��o de drogas. Dois filhos do escritor, Marcos, morto em 1993, e Paulo, tinham esquizofrenia grave, atribu�da pela fam�lia ao abuso de drogas, nos anos 1970, durante o ex�lio. Gullar e sua mulher, Thereza Arag�o, morta em 1994, ainda tiveram uma filha, Luciana.)
Transformados em livro, os resmungos de Gullar ganharam o Pr�mio Jabuti de 2007. Aquela era uma temporada de pr�mios —o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra, veio em 2005, quando o poeta fez 75 anos. Em 2010, a mais alta distin��o da l�ngua portuguesa, o Pr�mio Cam�es, foi de Ferreira Gullar. Em 2011, os Jabutis de poesia e de Livro do Ano foram para os poemas de "Em Alguma Parte Alguma". Em 2014, foi eleito para a cadeira 37 da Academia Brasileira de Letras, depois de passar anos afirmando que jamais aceitaria a imortalidade.
Na Flip, Gullar disse uma frase que viralizou nas redes sociais: "N�o quero ter raz�o, quero � ser feliz!". Outra m�xima criada por Gullar, "a crase n�o foi feita para humilhar ningu�m", publicada em 1955 no "Di�rio de Not�cias", mais tarde seria citada at� em an�ncios de computadores IBM, para deleite do autor.
Os livros que Gullar publicou nessa temporada de pr�mios sugerem que o octogen�rio cheio de vitalidade n�o estava dando muita bola para aquelas honrarias —e provavelmente estava feliz. Em "Zoologia Bizarra" (2010) e "Bichos do Lixo", com um prosaico hobby dom�stico, a colagem de pap�is coloridos, ele se fez ilustrador de literatura infantil —evidentemente, comp�s poemas para acompanhar os bichos de papel. J� em "Bananas Podres" (2012) Gullar retoma uma imagem recorrente em sua obra po�tica —o amadurecimento das frutas— em poemas manuscritos por ele mesmo e ilustra��es a guache sobre jornais velhos.
Depois de anos recusando se candidatar, Ferreira Gullar � eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2014.
No in�cio de 2016, causou desagrado na Record a sa�da do poeta da Jos� Olympio, editora do grupo, para a Companhia das Letras. A casa queixava-se de Maria Am�lia Mello, ex-gerente editorial da Jos� Olympio, agora atuar como agente do poeta —ao mesmo tempo em que � editora da mineira Aut�ntica.
Gullar deixa a companheira Claudia Ahimsa, dois filhos e oito netos.
PAULO WERNECK � editor e ex-curador da Flip (Festa Liter�ria Internacional de Paraty)
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