"N�o pedi para ser filha da guerra", disse Doris Lessing � Folha em 2001
Morta na madrugada deste domingo (17), a escritora brit�nica Doris Lessing deu entrevista � Folha por ocasi�o do lan�amento de seu 25� romance, "The Sweetest Dream". Ela acabara de receber o pr�mio Pr�ncipe de Ast�rias, na Espanha. Posteriormente, o livro foi publicado no Brasil com o t�tulo "O Sonho mais Doce".
Leia abaixo a reportagem publicada em novembro de 2001:
SYLVIA COLOMBO, EDITORA-ADJUNTA DA "ILUSTRADA"
"O dia hoje amanheceu lindo. O sol est� brilhando, � uma pena que o inverno esteja chegando. Este foi o outubro mais morno e agrad�vel dos �ltimos anos."
Quem atende assim o telefone, com a voz rouca de quem acaba de acordar, � Doris Lessing, 82, uma das mais importantes escritoras da l�ngua inglesa, que acaba de lan�ar no Reino Unido o 25� romance de sua extensa carreira.
"The Sweetest Dream", ainda sem previs�o de lan�amento no Brasil, � uma fic��o que passeia pela cultura e efervesc�ncia de ideias dos anos 60 e antecipa a frustra��o que o s�culo 20 traria a partir de ent�o para aqueles que, como Lessing, cresceriam com "a marca da guerra fincada em suas hist�rias pessoais". A desilus�o de seus contempor�neos com o comunismo permeia toda a obra.
A princ�pio, o livro seria o terceiro volume de sua autobiografia -cujos dois primeiros tomos j� foram lan�ados aqui ("Andando na Sombra" e "Debaixo da Minha Pele", ambos pela Companhia das Letras). Mas, ao come�ar esta que seria a �ltima parte da trilogia, Lessing mudou de ideia e resolveu transform�-la num romance.
"The Sweetest Dream" � uma saga familiar que atravessa o s�culo 20. Os principais atores deste enredo s�o Frances ("parcialmente eu", diz Lessing), seu ex-marido comunista Johnny e Julia, a matriarca. "Suas vidas giram em torno do dano que sofrem e veem sofrer os jovens nascidos da guerra. � tamb�m um livro sobre o estrago causado pelos sonhos, pelo idealismo", diz Lessing.
Politicamente ativa durante toda a carreira, Lessing tamb�m j� publicou, al�m de romances, ensaios e textos para teatro e �pera. Seu primeiro livro, "The Grass Is Singing", fazia uma cr�tica � pol�tica racial do Zimb�bue (ent�o Rod�sia, onde cresceu). J� "The Golden Notebook", por exemplo, tornou-se uma refer�ncia para as feministas --ainda que Lessing fa�a ressalvas � essa apropria��o.
No �ltimo dia 26 de outubro, a autora, que nasceu no Ir� e mora em Londres, recebeu na Espanha o Pr�mio Pr�ncipe de Ast�rias.
Leia os principais trechos da entrevista que a escritora concedeu � Folha, por telefone, da Inglaterra.
*
Folha - Por que a sra. transformou a terceira parte de sua biografia em um romance?
Doris Lessing - N�o quis machucar ou prejudicar pessoas fr�geis. Tenho insistido em dizer que, em "The Sweetest Dream", eu n�o fiz da minha autobiografia uma fic��o. Em termos gerais, trata-se de um romance familiar � moda antiga. H� coisas e pessoas totalmente inventadas, ao mesmo tempo em que h� muito de minhas impress�es.
E o que a interessa mais, a fic��o ou o relato autobiogr�fico?
Os dois s�o interessantes e dif�ceis a seu modo. Na autobiografia, � preciso ter disciplina e corre��o. Na fic��o � preciso ser livre, mas ao mesmo tempo saber controlar essa liberdade.
Se a sra. pudesse mudar algo de sua biografia, o que seria?
Nada. Em primeiro lugar, porque � imposs�vel que uma passagem de sua vida seja transformada sem que isso n�o tenha consequ�ncias em todo o resto dela. No meu caso, naqueles dias, na �frica, era preciso sair e procurar um caminho. Se eu n�o tomasse uma das decis�es que tomei, eu teria tido um outro destino. Era minha �nica sa�da. Em segundo lugar --e talvez essa seja a principal constata��o que fa�o a essa altura- porque descobri que � muito pouco o que podemos fazer por nossas vidas.
Como assim?
Quando olho para as dif�ceis decis�es que tomei, concluo que elas n�o eram nada perto do que foi o contexto em que cresci. Minha gera��o foi marcada pela 2� Guerra. N�o pedi para ser filha da guerra. N�o quisemos isso, mas est� fincado em n�s e determinou, praticamente, tudo.
Londres mudou muito desde os anos 60 retratados em "The Sweetest Dream"?
Bom, o clima infelizmente n�o mudou muito... Mas a cidade, sim. Est� melhor, hoje � mais efervescente. Tudo o que se dizia sobre a agita��o da Londres dos anos 60, eu acho que vale mais para a cidade que vejo hoje.
A sra. vem trabalhando em suas mem�rias h� anos. Esse processo fez com que repensasse sua atua��o pol�tica?
N�o. A alternativa que escolhi foi a �nica que teria sido poss�vel para mim na �poca. Hoje eu n�o aderiria ao comunismo, ningu�m de bom senso faria isso agora. Este � um tempo dif�cil para abra�ar uma s� bandeira, o que de maneira nenhuma � negativo. N�o procurei rever minha posi��o pol�tica, pois n�o � poss�vel mudar o que fizemos. Quanto ao tempo que dediquei aos livros, foi estimulante, escrevi um monte de outras coisas nesse per�odo.
Escrever a autobiografia ajudou-a a esclarecer coisas sobre sua hist�ria �ntima?
Sim, h� algo muito gratificante, que � o fato de me fazer lembrar de um monte de coisas de que h� muito havia me esquecido.
O que a sra. pensa da a��o militar contra o Afeganist�o?
Um erro. � s� olhar para a hist�ria dos s�culos que se passaram, cada vez que um pa�s foi atacado dessa maneira, isso s� fez aumentar a possibilidade de uma coaliz�o de apoio a esse alvo.
Livraria da Folha
- Box de DVD re�ne dupla de cl�ssicos de Andrei Tark�vski
- Como atingir alta performance por meio da autorresponsabilidade
- 'Fluxos em Cadeia' analisa funcionamento e cotidiano do sistema penitenci�rio
- Livro analisa comunica��es pol�ticas entre Portugal, Brasil e Angola
- Livro traz mais de cem receitas de saladas que promovem saciedade