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O abade ilustrado e o Brasil
MARIA DAS GRAÇAS S. NASCIMENTO
Imenso sucesso de
venda desde a sua primeira edição, em 1770, a
"História Filosófica e
Política das Possessões e do Comércio dos Europeus nas Duas Índias", do Abade Raynal, tinha sido pensada, de início, como um
balanço da colonização européia,
encomendada aliás por Choiseul,
ministro do exterior, que pensava
em reparar faltas cometidas na colônia, tentando, por exemplo, desenvolver a Guiana. Contudo seu
destino foi inteiramente diferente.
Entre o início da redação e a publicação, Choiseul tinha sido demitido, a política oficial havia mudado e a própria obra tomara um
perspectiva hostil ao governo
francês e às outras monarquias
colonizadoras, de tal modo que
Raynal resolveu publicar anonimamente as duas primeiras edições. Quando apareceu a terceira
edição, o Parlamento de Paris
condenou a "História" a ser
queimada, e seu autor à prisão
(prudentemente, Raynal já estava
no estrangeiro). O documento da
condenação afirma que a obra é
"ímpia, blasfematória, sediciosa,
tendendo a sublevar os povos
contra a autoridade soberana e a
derrubar os princípios fundamentais da ordem civil".
Para dar corpo ao imenso plano
(que no fim resultará em vários
volumes), Raynal recorre a documentos fornecidos por amigos,
aos relatos de viagens que são numerosos na época e sobretudo à
colaboração de alguns escritores
que poderiam, na sua opinião, dar
"um tom filosófico" ao texto, o
que ele considerava uma fórmula
infalível de sucesso. Assim se explica a participação de Diderot,
que fornece várias passagens e
mesmo capítulos inteiros para o
livro, desde a primeira edição.
Feita a várias mãos, a obra tem visões diversificadas e às vezes contraditórias. Nela associam-se mais
ou menos arbitrariamente relatos
sobre a situação das colônias e dos
países da Europa, interrompidos
constantemente para dar lugar a
polêmicas em torno dos grandes
temas do pensamento da época
das luzes, o que transforma o conjunto num lugar de debate onde se
defrontam as principais tendências do pensamento político e filosófico da segunda metade do século.
Como pano de fundo do texto,
temos o relato das conquistas coloniais, seguido de um balanço
comercial e político desta colonização, acompanhado de recomendações e propostas de melhorias. Ao mesmo tempo, são feitas
descrições geográficas e observações sobre a vegetação e a fauna
das regiões. Num segundo plano,
aparecem reflexões filosóficas,
morais e políticas, que fazem apelo à razão e manifestam uma posição humanitária em relação aos
povos colonizados. Por último, de
modo às vezes inusitado, surgem
discursos políticos dirigidos a estes mesmos povos, que frequentemente terminam com apelos à rebelião.
No capítulo 12 do livro terceiro,
por exemplo, após comentar a renovação dos privilégios concedidos à Companhia Inglesa das Índias, assinalando o caráter opressor do monopólio, o autor exclama: "Povos, cujos rugidos tantas
vezes fizeram os senhores tremerem, o que estais esperando? Para
quando estais reservando vossas
tochas, e as pedras que calçam as
ruas?". Num tom semelhante, no
capítulo 29 do livro 12�, sobre a
história da Dinamarca, o escritor
parece perder a paciência com o
conformismo dos povos explorados e, dirigindo-se a eles, diz:
"Povos covardes! Povos estúpidos! Já que a continuidade da
opressão não vos devolve a energia... então, obedecei, sem nos importunar com vossas queixas...".
Passagens deste teor, muito comuns nos diversos volumes da
"História", é que levaram a censura a condenar a obra e explicam
a presença da obra de Raynal entre os livros apreendidos pelos poderes coloniais nas bibliotecas de
participantes de rebeliões no Brasil, como mostram os estudos sobre a presença das idéias francesas
nos movimentos libertários do
Brasil colônia.
A OBRA
O Estabelecimento dos Portugueses no Brasil
(Livro 9� da História Filosófica e Política das Possessões e do Comércio dos Europeus nas Duas Indias)
Abade Raynal
Tradução: Mônica F. C. Campos de Almeida e Flavia Roncarati Gomes
Editora da Universidade de Brasília (Tel.061/226-6874)
160 págs., R$ 17,00
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O livro nono da "História" de
Raynal, que relata as conquistas
portuguesas no Brasil, segue o esquema geral adotado por Raynal:
relato da descoberta, descrição da
população local, da fauna e da flora, das atividades de produção,
tudo isto entremeado de reflexões
morais e políticas. De vez em
quando, críticas aos colonizadores, que, quando ultrapassam o
Equador, "conservam, de seus
princípios, apenas aquilo que puder justificar sua conduta". O europeu que chega às colônias torna-se "rastejante, quando fraco;
violento quando forte; apressado
em adquirir, apressado em desfrutar; e capaz de todos os crimes
que o conduzam mais rapidamente a seus fins".
Por oposição a este retrato do
colonizador violento, desenha-se
o perfil idealizado dos povos nativos do Brasil, um pouco à moda
da noção do "bom selvagem":
amantes da dança e do canto, pacíficos, generosos e sobretudo livres, diz o autor, seu espírito era
em tudo contrário à dominação
que os europeus queriam lhes impor. Mas o que podiam povos serenos e tranquilos contra as armas
da Europa? Entretanto o texto não
chega a esconder um preconceito
comum na época, a respeito da
"indolência natural" dos índios,
que nem mesmo a miscigenação
com os europeus teria conseguido
superar. Além disto, não deixa de
ser espantoso que, após mais de
dois séculos de colonização portuguesa, Raynal tenha dedicado
tão pouco espaço à questão da escravidão negra e que as poucas
passagens nas quais é questão o
trabalho escravo sejam marcadas
por uma ingenuidade suspeita: segundo o autor, os escravos no
Brasil podiam facilmente comprar
a sua liberdade, que podia ser até
exigida do senhor quando havia
maus tratos, o que explicaria o fato de que "quase não há negros
fugitivos neste vasto país".
Ingenuidades ou preconceitos à
parte, o texto de Raynal manifesta
de qualquer modo a ideologia humanitária e anticolonialista que já
estava presente em outros pensadores das luzes, tais como Montesquieu e Voltaire, que também
protestaram contra as práticas dos
colonizadores. Contudo sua crítica não chega a contestar o direito
de colonização. As razões são
compreensíveis: de um lado, comerciantes e armadores falavam
mais alto que filósofos e escritores
inspirados em sentimentos humanitários. De outro, a própria ideologia das luzes, que valorizava o
progresso da razão, das ciências e
das técnicas, contribuía para que
se pensasse que a Europa poderia
levar aos nativos da América um
bem, a civilização. O problema é
que, ao invés de homens imbuídos destes valores, ela enviou, como diz Raynal, sobretudo no caso
de Portugal, "alguns proscritos
sem costumes". Por isso, nas palavras do autor, "o Brasil, esta
grande colônia, (...) não foi jamais
o que deveria ser. Os nobres que,
nessa época, lá obtiveram províncias, fizeram delas um teatro de
massacres e destruições". O ideal
teria sido "nada de armas, nada
de soldados; muitas jovens para os
homens, muitos jovens para as
mulheres", mas os portugueses
entregaram-se exatamente às inclinações contrárias. O mal, portanto, não foi a colonização enquanto tal, mas o colonizador rapace e violento.
Estas limitações da "História"
(que na verdade só são limitações
aos nossos olhos de hoje) não impediram contudo que Diderot,
que havia participado ativamente
de sua elaboração, a considerasse
uma obra capaz de fazer com que
os tiranos dos povos se tornassem
pelo menos mais detestados e que,
assim, os povos, por sua vez, se
tornassem menos pacientes em
relação à sua própria submissão
aos poderes despóticos.
Maria das Graças Nascimento é professora no
departamento de filosofia da USP.
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