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JOSÉ SARNEY
Cochrane, Iraque e Rachel
Estava lendo um livro sobre as
guerras da independência, a narrativa "No Libertar-se o Brasil da Dominação Portuguesa", de um sujeito
pelo qual não tenho nenhuma simpatia: um tal de Lord Cochrane, como
diria Juan Rulfo, ao falar de Pedro Páramo. É que ele foi contratado pelo
imperador dom Pedro para fazer o
que tinha feito no Chile, participar das
lutas pela consolidação da independência, é claro que pago e muito bem,
como sempre exigiam os almirantes
ingleses, chamados por alguns de piratas.
Ele chegou ao Maranhão para fazê-lo aderir à independência. Destituiu o
presidente da Província, exigiu resgate
da cidade e, alegando que o Império
não lhe pagava o que devia, fugiu com
a "gaita" para a Inglaterra. A memória
de São Luís o tem, até hoje, como saqueador. O nosso dom Pedro 1� deu-lhe o título de marquês do Maranhão,
o primeiro agraciado da grande lista
dos nobres brasileiros. Está sepultado
na Abadia de Westminster, com direito a lápide: "Lord Cochrane -marquês do Maranhão". Olhei, passei ao
lado, resmungando: "corsário".
Nas memórias, que o Senado agora
pública nas suas extraordinárias edições de obras raras, ele confessa que
pilhou a cidade, "assunto que, para
mim, há sido causa de tanta censura".
Desculpa-se: isso poderia "representar-se como um roubo escandaloso,
apesar de não ser mais que um quarto
da soma devida [a ele] pelo Império
brasileiro".
Alegava Cochrane: "A Junta da Fazenda mandou-me uma comunicação
verbal dizendo que dariam a quantia
concordada em comutação pelo dinheiro de presas devido aos tomadores. Sabendo eu que, em caso de ir-me
embora" -o que ele fez-, "tais letras
não valeriam o papel em que fossem
escritas, rejeitei a oferta". E, sem maior
reserva, orgulha-se de ser "um homem que havia sido contratado sob a
estipulação expressa do direito às presas".
Não satisfeito com isso, justifica o
saque do Maranhão por ter encontrado a esquadra "com demoras nos pagamentos, que eram o triplo das contas contratadas", tudo justificado, já
que, "o governo não pagando em dia,
eles tinham de aumentar o preço".
Coisas de antigamente. Falava mal da
Junta da Fazenda, contando coisas
que hoje seriam inconcebíveis : "Ela
possui tão baixo crédito que suas letras têm sido vendidas a 30% de desconto, e sou crivelmente informado
que em tempo nenhum se pode receber dinheiro do Tesouro sem se pagar
uma forte percentagem aos empregados inferiores".
Era o motivo para a pilhagem. O governo não pagando, pagavam os particulares saqueados. Aliás, esse negócio de presas de ocupação está sendo
utilizado ainda hoje no Iraque. Em
vez das pobres jóias maranhenses, o
petróleo. E o senhor Dick Cheney tem
direito também a suas empresas.
É nessas leituras e meditações que
sofro a comoção da morte de Rachel.
Santa de altar, Nossa Senhora da Academia, e deusa da nossa literatura.
Lembro-me da Rachel, escritora magistral e figura humana dessas que em
cem anos acontecem apenas poucas
vezes. Nos últimos dias, dizia a Emília
Lobato, que lhe propunha trazer um
queijo da França, o brie, de que tanto
ela gostava: "Não traz, não, isso é coisa que só é boa no pé".
E me advertiu quando falou do Álvaro Pacheco: "Cuidado com os poetas, Sarney, eles gostam de fazer a gente sofrer, cantando dores que não sentem".
Rachel, adeus. E a Lord Cochrane: tô
nem aí!
José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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