São Paulo, domingo, 31 de julho de 2005 |
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A descoberta da democracia
Nascido em
29 de julho de 1805,
o aristocrata
Alexis de Tocqueville previu as conseqüências políticas e sociais do fim das hierarquias
e da instauração
da igualdade
e é cada vez mais reconhecido como um dos principais teóricos capazes de explicar a história
e a sociedade contemporânea
OTAVIO FRIAS FILHO
Que floresta é essa? Ela é uma síntese da própria vida do escritor, o ponto de encontro para o qual convergem não só o político derrotado e o historiador já quase cientista social, mas o conservador visionário, o republicano moderado e o aristocrata anglófilo que ele sempre foi. Tocqueville, cujo bisavô foi guilhotinado pela Revolução Francesa, proveio de um mundo que a modernidade havia desbaratado. É esse ponto de vista retrógrado que lhe permite o recuo necessário para criticar a democracia de massas então nascente. Dessa posição contra-ofensiva nascem as inversões que caracterizam sua filosofia da história. Ela postula, como axioma, que sob a superfície acidentada dos grandes feitos, das legislações e de tudo o que há de aparente e formal na história, correm rios subterrâneos impelidos por forças invisíveis, mas inarredáveis. Tais forças residem no que ele chama, seguindo a fórmula de Montesquieu, de "costumes", algo que se poderia traduzir como a experiência prática, material e privada das sucessivas gerações. O vetor dos "costumes", conforme se desenvolvem os meios técnicos e se propaga a conhecimento, é sempre na direção de mais igualdade entre as classes e os indivíduos. Tocqueville sustenta que nas sociedades tradicionais (que ele chama de "aristocráticas"), baseadas na propriedade da terra e numa hierarquia rígida, vigoram direitos e liberdades bem estabelecidos, embora desiguais. Esses interstícios de liberdade resultam de um jogo em que cada poder, mesmo o do rei, é limitado por "corpos secundários": a nobreza, o clero, os tribunais, os burgos, as corporações de ofício, as autonomias provinciais -e a estrutura inteira está circunscrita pelo respeito à tradição. Formada ao longo dos séculos, a mais feliz dessas sociedades, a britânica, teria alcançado o equilíbrio exemplar entre liberdade e autoridade. E, no entanto, o destino das sociedades é se tornarem democráticas e igualitárias. Nesse processo, os "corpos secundários" são debilitados e destruídos, cada indivíduo perde o vínculo que ligava seu destino aos demais e todos se convertem em átomos à mercê da autoridade, que se faz despótica em nome da missão de realizar a felicidade geral, missão que ela extorque à sociedade ao mesmo tempo em que esta se apressa em delegá-la. Sobre a terra arrasada da igualdade, um único poder se impõe: eis a tirania moderna. Nosso autor reconhece que a democracia é um bem (um pouco a contragosto) que acarreta um grande mal (descrito em tons alarmantes). A única maneira de evitar a tirania moderna, já que as pressões pela igualdade não podem ser detidas, é organizar novos "corpos secundários", aptos a moderar o apetite de todo governo pelo poder ilimitado. Foi a curiosidade de verificar se isso estava ocorrendo nos Estados Unidos que o levou, aos 26 anos, a pretexto de estudar o sistema penal daquela democracia florescente, à viagem de nove meses da qual resultou "A Democracia na América". A conclusão, bem a seu feitio, é de um pessimismo moderado. Em meio a suas famosas profecias -ele previu, em 1835, a marcha para o oeste, o extermínio das culturas nativas, a guerra civil em torno da escravatura e até um futuro em que russos e americanos controlariam cada hemisfério do planeta-, Tocqueville agita o perigo da "tirania da maioria" como a grande ameaça a pesar sobre os EUA e as democracias modernas em geral. Mas ressalta, na sociedade norte-americana, a presença de três aspectos capazes de afastar esse risco. O primeiro é a tradição de autogoverno da comuna -uma espécie de democracia municipal- entranhada na América pré-revolucionária por transfusão do colonizador inglês. Na democracia comunitária, que se replica na autonomia dos Estados em face do poder federal, estaria o maior obstáculo ao despotismo. Um segundo aspecto também é legado da influência britânica: o costume da livre associação dos indivíduos, para fins coletivos e sem permissão da autoridade. O terceiro seria a liberdade de imprensa, prática estabelecida desde o final do século 17 na Inglaterra e já disseminada, numa efervescência de jornais turbulentos e aguerridos, nos Estados Unidos que Tocqueville conheceu. A inversão francesa O êxito tão notório dos Estados Unidos como sociedade, como modelo político-ideológico e como poder mundial faz da obra de juventude seu livro cada vez mais famoso. "O Antigo Regime e a Revolução", obra amarga de um político liberal posto no ostracismo pela ditadura de Napoleão 3�, ficou um tanto eclipsado. O que é uma pena, pois nesse segundo estudo o autor analisa o advento da revolução e da democracia numa sociedade -a sua própria- em que os "costumes" não ofereciam leito apropriado. Onde, ao contrário, o caminho do despotismo já vinha sendo longamente preparado pela realeza. O livro está montado numa inversão desconcertante, a de que não foi a Revolução Francesa que produziu a centralização do poder, mas a centralização que deu origem à revolução. Tocqueville enfatiza que a ordem feudal fora mantida nas aparências e ao mesmo tempo esvaziada entre os séculos 16 e 18, à medida que o rei enfeixava uma soma crescente de poderes. Nobres e eclesiásticos continuavam a desfrutar de títulos, isenções tributárias e honrarias, mas a administração era exercida cada vez mais por um corpo de funcionários profissionais, que respondiam diretamente ao Conselho do Rei. Antigas liberdades, autonomia das províncias e das cidades, o poder dos juizados locais -as instâncias intermediárias, os tais "corpos secundários"- foram aniquilados. O governo central açambarcara as atribuições de tributar, recrutar milícias, manter a ordem pública, realizar obras, tabelar preços, confiscar terras e assim por diante. A imagem que ele usa é a de um edifício novo e invisível que fora construído aos poucos por baixo do velho. Quando sobreveio a revolução, em 1789, tudo o que ela precisou fazer foi sacudir o edifício antigo, que se desmanchou em pó, revelando o verdadeiro aparelho governamental, cujo controle então é transferido das mãos de um monarca reformista para uma "assembléia irresponsável e soberana", disposta a implantar o terror como política a ser executada em nome da razão, da liberdade e da igualdade. Tocqueville incrimina os filósofos iluministas pelo desastre. Alijados de qualquer experiência administrativa pelo absolutismo monárquico, literatos ignorantes também no que se refere à história das sociedades e por isso mesmo adeptos de esquemas abstratos, geométricos, os iluministas se propuseram a reinventar a humanidade a partir do zero. Criaram uma concepção puramente racional que, aplicada à política, era obrigada a violar, um a um, seus próprios princípios: genocídio em vez de fraternidade, opressão em vez de liberdade etc. Para ilustrar o quanto a mentalidade dos "filósofos" já se difundira, Tocqueville se compraz em citar a freqüência com que editos de Luís 16, bem anteriores à revolução, mencionavam a lei natural e os direitos do homem. Nas revoluções, em que o senso comum vê a ruptura, Tocqueville distingue os veios ocultos de continuidade. Essa é uma das portas de acesso a sua atualidade. Muito do que ele diz sobre a Revolução Francesa ("que é sempre a mesma, pois ela continua"), pode ser transposto para as revoluções socialistas do século 20. A pretexto de outra miragem racionalista -a de implantar o paraíso social-, essas revoluções limitaram-se, mais modestamente, a produzir a centralização estatal capaz de implementar industrializações retardatárias a ferro e fogo. Tocqueville separa o que as revoluções dizem fazer do que elas fazem. E suas críticas a Voltaire, Rousseau e os demais iluministas podem ser voltadas sem retoque às gerações de intelectuais marxistas cuja arrogância fantasiosa ajudou a empurrar milhares, milhões de pessoas para uma morte violenta e fútil. Quanto ao lado "americano", muitos críticos da atual uniformidade de pensamento e da submissão dos agentes políticos ao "mercado" encontrarão eco de suas inquietudes na noção tocquevilliana segundo a qual, na sociedade democrática, os indivíduos estão "aprisionados na vida privada", imersos na busca de "prazeres materiais" e submetidos à "tirania da maioria" -um brando despotismo instalado sobre as ruínas do espaço público. Além disso, entre os motivos para ler este clássico, é o caso de mencionar a qualidade expressiva do texto, pois Tocqueville foi um dos expoentes de uma época em que filósofos e cientistas sociais se julgavam na obrigação de escrever tão bem quanto romancistas -em vez de ser justamente o contrário. Texto Anterior: + cultura: Café com jazz Próximo Texto: Um profeta equívoco Índice |
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