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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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Em "Eros, Tecelão de Mitos", Joaquim Brasil Fontes reafirma a importância de Safo na lírica ocidental

Figurações do erotismo feminino

André Malta Campos
especial para a Folha

É com dupla surpresa que lemos as páginas de "Eros, Tecelão de Mitos", livro de Joaquim Brasil Fontes sobre a poesia de Safo de Lesbos, a renomada cantora do amor entre mulheres. Surpresa, primeiramente, porque esse trabalho agora reeditado vem preencher uma grave lacuna nos nossos estudos brasileiros da lírica em geral; e surpresa, também, porque nele o autor consegue fundir, com competência, erudição acadêmica e ensaísmo literário, conferindo-lhe singularidade no panorama das interpretações da poesia grega antiga. Se a erudição lhe possibilita o trânsito pela rigorosa bibliografia especializada, com análises certeiras e informações valiosas, o ensaísmo, num movimento contrário, mas quase simultâneo, faz com que uma leveza na escrita e um saudável descompromisso penetrem o texto. O resultado é uma forma híbrida, com um conteúdo híbrido e desconcertante. Que o leitor não espere encontrar no livro apenas a poesia arcaica de Safo, que floresceu por volta de 600 a.C., mas a de Safo e sua (per)versão pelos modernos, pelos latinos, pelos alexandrinos e pelos gregos antigos. Nesse movimento retroativo, que marca a primeira parte, Brasil Fontes inicialmente comenta o uso feito por Charles Baudelaire, no século 19, da história já popular na antiguidade do suicídio de Safo, rejeitada pelo barqueiro Fáon, por quem renunciara ao amor às mulheres; em "As Flores do Mal", a figura de Safo, nos diz Brasil Fontes, dramatiza o destino do artista e se identifica com a do poeta maldito e desterrado.

Prosa fragmentária
Já na carta 15 das "Heróides" de Ovídio, escritor do final do século 1� a.C., descobrimos que o retrato de Safo vem se conformar aos padrões retóricos augustanos; o autor aponta com minúcia, nesse que é um dos trechos mais interessantes do livro, como o elegante discurso da poeta a Fáon -construído por Ovídio e adaptado aos moldes do amor homossexual pederástico- é fruto de uma hábil manipulação da convenção poética da época, que não podia conceber a figuração do erotismo feminino. Em seguida, atravessamos anedotas e comentários diversos sobre Safo e sua vida, numa prosa interrompida e ela mesma fragmentária, que mimetiza a obra da poeta, citada pelos antigos parcialmente aqui e acolá e tirada dos rolos de papiro que se vão revelando, restaurando e decifrando continuamente. É só depois desse percurso que volta no tempo que se chega, na segunda parte, à análise dos versos sáficos de que dispomos, uma pequena porção de uma obra que teria milhares deles. Guiado sobretudo pelo inglês Denys Page, Brasil Fontes aborda, por exemplo, na análise exemplar da "Ode a Afrodite" (o único poema que temos na íntegra), a caracterização da deusa, com seus epítetos e seu sorriso contraposto à dor humana, a concretitude da linguagem arcaica, os lugares-comuns e as especificidades, a relação com a épica de Homero. No último caso, talvez não devêssemos imaginar uma passagem radical e uma mudança de valores do contexto épico para o lírico, como se tivessem se sucedido no tempo.

Sintomas do eu-lírico
Mas essas questões estritamente acadêmicas são elegantemente contornadas pelo autor: não é esse seu foco. Seu foco é circular, flanar por esse corpus poético dilacerado, em que lesbianismo não se confunde com erotismo vulgar, mas antes com uma sublime simplicidade e delicadeza -perturbada às vezes na versão do tradutor-, como nesta descrição dos sintomas do eu-lírico diante da visão da amada: "Um frio suor me recobre, um frêmito do meu corpo/ se apodera, mais verde que as ervas fico;/ que estou a um passo da morte".
O percurso não é linear: antes de chegarmos à terceira parte, que contém todos os versos restantes em grego de Safo, com sua tradução para o português, passamos ainda por vestígios de Platão, Rimbaud, Lautréamont e por outros depois... Brasil Fontes, admirado, sobre a poesia amorosa de Safo ao final nos fala pouco, porque intui que a eloquência da poesia amorosa de Safo reside em sua fragmentária e providencial escassez. Como não esperar essa sabedoria de quem se auto-intitula um amador, em dois ou três sentidos dessa palavra?


André Malta Campos é professor de língua e literatura grega na USP, autor de "O Resgate do Cadáver - O Último Canto da Ilíada" (ed. Humanitas).


Eros, Tecelão de Mitos
608 págs., R$ 54,00 de Joaquim Brasil Fontes. Ed. Iluminuras (r. Oscar Freire, 1.233, CEP 01426-001, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/ 3068-9433).


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