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CAINDO NA REAL
Exercício de inculpação coletiva no Brasil esconde fuga das obrigações individuais
Crise culpa e responsabilidade
GABRIEL COHN
especial para a Folha
Para exprimir a idéia de crise os
chineses usam uma composição
de dois ideogramas. Um significa
perigo e o outro representa oportunidade. Não me perguntem se é
assim mesmo; só sei que essa suposta construção chinesa é invocada com frequência como uma
bandeira para elevar o moral dos
que se assustam à mera menção da
palavra crise. Afinal, se ao perigo
se associa a oportunidade, por que
recuar? Passa-se assim sem escalas
da imagem de algum velho mandarim à celebração dos intrépidos
enfrentadores de riscos. Mas, admitindo-se que essa concepção de
crise existisse na cultura chinesa
tradicional, será que ela ainda teria algo a nos dizer? A questão toda está na palavra "tradicional",
que acabo de usar. Ela assinala que
uma concepção desse tipo faz sentido num mundo governado por
ritmos lentos, cortados aqui e ali
por situações excepcionais, em
que as possibilidades da perda de
tudo ou do ganho sem precedentes como que se equilibram.
Por expressiva que fosse, essa
imagem, que evoca o mundo do
comércio mais do que da expansão produtiva, só faz sentido numa cadência temporal que, medida pelos padrões atuais, é muito
lenta. Aplica-se mal, portanto, em
todo o lugar em que se desenvolveu o capitalismo industrial, até
porque este é inseparável da aceleração de uma espiral histórica de
condições críticas ligadas à ruptura e à criação do novo.
Mas o que decisivamente contribui para esvaziar essa bela imagem
é algo mais fundo do que uma
concepção particular de crise. É o
esvaziamento (talvez fosse melhor
dizer a sobrecarga) da própria
idéia de crise. É que a própria aceleração crescente das temporalidades, a começar pela dos processos econômicos, converteu a crise
em norma ao invés de condição
excepcional. É significativo que
justamente neste ponto ganhe circulação uma nova imagem com
ressonâncias chinesas. Trata-se da
idéia de "janela de oportunidade", que evoca mais os mandarins
Ming do que os analistas de mercado de Soros. Nela combinam-se
de modo exemplar a visão contemplativa tradicional com a alusão tipo "science fiction" ao momento exato para passar a uma
outra dimensão. Essa estranha
mescla faz sentido se considerarmos que hoje, embora numa outra
escala temporal e com outra experiência histórica, o espírito da época também se volta mais para a riqueza pura e simples, para os fluxos financeiros, do que para os
processos produtivos (de passagem, pode-se extrair uma advertência destas observações soltas:
olho nos chineses, vocês ainda não
viram nada!).
Nessas novas condições o risco e
a oportunidade se entrelaçam tão
estreitamente e com intervalos tão
curtos que só há um modo de
manter-se à tona para aqueles que
pretendem beneficiar-se dessa nova dinâmica histórica espasmódica, sempre à beira da fibrilação. É
preciso manter-se em movimento,
nenhuma peça pode ficar imóvel
no tabuleiro das economias. E esse
tabuleiro assumiu escala planetária. Os pobres intérpretes do novo
Olimpo (às vezes alçados à condição de seus mitólogos) esfalfam-se
para ajustar seu sofisticado arsenal
analítico às mudanças de humor
de um pequeno número de entidades, cuja capacidade de combinar
desígnios momentâneos inteiramente plausíveis com o mais completo capricho nos gestos humilharia o velho Júpiter. É que esse
novo Olimpo pouco tem a ver com
aquele sossegado repouso dos
deuses. Seus habitantes, esbaforidos, mais parecem o coelho sempre atrasado de Alice do que o majestoso Zeus. Isso dificulta a tarefa
dos intérpretes e dos novos moralistas, pagos para recomendar linhas de ação.
Quando os economistas perdem
o fôlego, entram em cena os seus
primos retóricos, que invocam o
acidente no lugar do destino, o arbítrio no lugar da razão, ou, numa
linguagem desqualificadora, a política no lugar da economia. É assim que uma bravata inconsequente de um pastor montanhês
pode custar-lhe o estima de ter
provocado a ira dos deuses, enquanto os verdadeiros trapalhões
se escondem em algum tempo distante até que a tempestade se desloque para outras paragens. Nesse
cenário a referência à crise não
serve para explicar nem o suposto
senso de oportunidade de uns
nem o alegado fracasso de outros.
O prejuízo é para todos
Mas voltemos ao universo greco-romano (devidamente misturado ao judaico-cristão) mais familiar a nós. Nele a idéia de crise
está ligada à de ruptura, à cisão.
Sua figura básica não é tanto o
rentista, que aproveita oportunidades, quanto o empreendedor,
que as cria. No limite é o grande
estadista, que no momento decisivo sabe estabelecer os limites e as
condições do poder soberano. Está em jogo a capacidade de decidir,
de fazer o corte entre a situação
dada e um novo estado de coisas.
Aqui a grande questão que se coloca é de natureza política, no sentido pleno e não amesquinhado do
termo. Trata-se de enfrentar o desafio da responsabilidade e de resistir à tentação preguiçosa da
busca dos culpáveis.
Entretanto, o que vimos nos últimos dias é bem diferente. Fomos
testemunhas de condutas e procedimentos que acabaram por trazer
à tona de maneira exemplar traços
fundos da nossa cultura política
(ou do modo brasileiro de ser cidadão). Trata-se do cultivo da
idéia da culpa. Mais exatamente,
trata-se do exercício da inculpação. E esta, pelo seu impulso meramente punitivo (mesmo que a
punição se reduza à execração
simbólica), é o exato oposto da
responsabilidade, até porque sua
função consiste precisamente em
livrar-se dela. Mas essa conduta de
busca dos culpáveis encontra seu
complemento indispensável em
outro aspecto fundamental dessa
mesma cultura política.
Trata-se da orientação para a
"socialização das perdas", para
adotar um termo que Celso Furtado usava para outras questões (e,
diga-se de passagem, em outro
contexto histórico, quando as referências à crise ganhavam sentido
contra o pano de fundo vigoroso
de planos de desenvolvimento e
não ocorreria a ninguém a idéia de
"gerir a crise"). Sem este segundo passo a coisa não funcionaria.
Consiste ele em atribuir a todos os
desprevenidos o custo do que foi
feito, numa distribuição tanto
mais generosa quanto o que se distribui são prejuízos. Esse impulso
distributivista perverso atravessa a
vida dos cidadãos em todos os níveis. Vai desde o pequeno gesto
supostamente privado de deixar
entulho na rua para ser distribuído na forma de pó pelo bairro todo até o grande gesto da imposição pelo poder público dos custos
da má gestão de recursos federais
ao conjunto dos contribuintes.
Então ficamos assim: sempre
que possível aponta-se um culpado, real ou fictício, porque não é
isto que importa; e as consequências do que foi feito serão distribuídas por todos os que não conseguirem safar-se em tempo. Essa
é a lógica da coisa, a maneira brasileira de lidar com aquilo que em
algum momento mereceu o nome
de crise. E, pelo que se vê, tudo indica que dela não têm como escapar nem mesmo os mais sofisticados intelectuais, treinados na análise da cultura e da política e não
jejunos em economia, quando estão no poder nacional -ou naquilo que em algum momento
mereceu o nome de poder nacional.
Gabriel Cohn é professor de ciência política na
USP e editor da revista "Lua Nova", do Centro de
Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec).
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