São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004 |
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+ brasil 505 d.C. Navegando contra a corrente da esquerda, grupo renunciou aos prêmios de viagens ao "paraíso socialista", mas construiu uma imagem da classe operária que nada tinha a ver com os operários de carne e osso A utopia radical do trotskismo no Brasil
Boris Fausto
No Brasil, os primeiros grupos trotskistas tiveram como objetivo levar o PCB ao retorno ao "verdadeiro caminho revolucionário", na linha da Oposição de Esquerda, que buscava mudar os rumos da Terceira Internacional, transformada em agência de Moscou. Um bom exemplo é a Liga Comunista Internacionalista (LCI), fundada em janeiro de 1931, reunindo figuras como Aristides Lobo, Livio Xavier, Mario Pedrosa, João da Costa Pimenta. Constituída por não mais que dezenas de pessoas, a LCI nascia, entretanto, em uma época na qual o PCB reunia apenas algumas centenas de quadros, antes da entronização de Prestes no partido e do ingresso de outros quadros militares, provenientes do tenentismo. Ao longo dos anos, trotskistas e comunistas se odiaram, com um ódio que lembra as brigas de família. Exemplos, a dissidência liderada por Herminio Sachetta, em 1937, opondo ressalvas ao apoio à candidatura de José Américo de Almeida às eleições presidenciais de 1938, ou a cisão de José Maria Crispim e seu grupo, em 1952. Expulsos do PCB, esses grupos optaram pelo trotskismo, temporária ou definitivamente. A história do trotskismo no Brasil tem sido pouco estudada. Algumas exceções são a coleção de documentos da LCI, publicada por Fúlvio Abramo e Dainis Karepovs, com o sugestivo título de "Na Contracorrente da História" (ed. Brasiliense, 1987) e o recente livro de Murilo Leal, também com um título feliz, "À Esquerda da Esquerda" (ed. Paz e Terra, 2004). O livro de Leal abrange o período de existência do Partido Operário Revolucionário (POR), entre 1952 e 1966. O POR não abrigava mais do que poucas dezenas de militantes, a tal ponto que o estridente PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado) de nossos dias, comparativamente, pode ser considerado "um partido de massa". Mas tinha alguma importância qualitativa e se tornou fonte de embaraço, quando não de reflexão, para muitos militantes desencantados com o PCB, após as denúncias incompletas de Kruschev sobre os horrores do stalinismo. Leal faz uma reconstrução cuidadosa daqueles anos, reproduz documentos desconhecidos e, ao mesmo tempo, perde a meu ver uma oportunidade: a de fazer a sociologia de um grupo que optou por navegar contra a corrente, renunciando aos prêmios de viagens ao "paraíso socialista", e, mais do que isso, sofreu a carga brutal de calúnias dos que se supunham portadores da história. Partido de vanguarda Não é o caso de destacar aqui os textos reproduzidos no livro, que não deixam de ter interesse. Quero apenas lembrar como os trotskistas construíram uma imagem da classe operária e de seu "partido de vanguarda" que nada tinha a ver com os operários de carne e osso. Curiosamente, um lampejo dessa percepção aparece num veemente documento de 1966, reproduzido em parte por Leal. Diz o texto: "A pretexto de sermos "um partido de quadros", faz-se uma política que só visa a recrutamento e discussão com a vanguarda (também idealizada segundo modelos moralistas), num preciosismo e aristocratismo que se enoja do operário real, operário que toma cachaça, vai a futebol e talvez tenha vida conjugal irregular". Como não acompanho o trotskismo dos dias de hoje, não sei se essa crítica se aplica aos dois partidos existentes -o PSTU e o PCO (Partido da Causa Operária). Sei apenas que eles se digladiam ferozmente, como tem acontecido com todos os grupos e subgrupos trotskistas, ao longo do tempo. Será que a condição de marginalidade política conduziria, necessariamente, ao fundamentalismo de textos e de visão do mundo? Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 505 d.C." (depois de Cabral). Texto Anterior: Et + cetera Próximo Texto: Topografia literária da violência Índice |
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