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BRASIL 500 D.C.
Já na época de d. João 3�, os portugueses viam o Brasil como um refúgio seguro
Um abrigo nos trópicos
EVALDO CABRAL DE MELLO
especial para a Folha
Na sua biografia do padre Antônio Vieira, João Francisco Lisboa,
cuja lusofilia era pronunciada,
após acentuar que o Brasil fora a
única colônia portuguesa a preservar "o selo da metrópole", manifestava a esperança de que ele ainda pudesse oferecer aos lusitanos
"um último e seguro abrigo se as
grandes transformações e catástrofes, de que o nosso século oferece tantos exemplos, violando a
sua independência e nacionalidade, os obrigar a abandonar em
grandes massas o solo sagrado da
pátria".
O historiador oitocentista talvez
não se desse conta de que semelhante afirmação era apenas o eco
de uma crença que já tinha curso,
entre os nossos colonos de quinhentos, acerca do papel messiânico que caberia ao Brasil nos destinos de Portugal. O autor dos
"Diálogos das Grandezas do Brasil", por exemplo, referia haver
previsto um astrólogo da corte de
d. Manuel que a terra recém-descoberta por Cabral haveria de se
tornar "uma opulenta província,
refúgio e abrigo da gente portuguesa". E na sua "História do
Brasil", concluída alguns anos
depois dos "Diálogos", frei Vicente pretenderá que, já ao tempo
da fundação de Salvador e ao longo do reinado de d. João 3�, tratou-se, para a hipótese de invasão
do Reino, da possibilidade de passarem-se El Rei e seus vassalos à
América, que proporcionaria a
base ideal para a reconquista da
mãe pátria, devido à sua posição
estratégica, superior à dos Açores,
demasiado próximos, e da Índia,
demasiado distante. É preciso não
esquecer que d. João 3� reinou no
período de afirmação máxima na
monarquia espanhola na Europa;
que, por um lado, e a despeito das
boas relações que cultivava com o
cunhado Carlos 5�, a desconfiança
com Castela, capaz às vezes de ainda raiar pela paranóia coletiva, é
uma constante da história portuguesa; e que, por outro, essas mesmas boas relações tornavam o Reino vulnerável a um ataque dos inimigos da Espanha.
Frei Vicente do Salvador desenvolveu, aliás, os motivos pelos
quais o Brasil oferecia acolhida
mais segura do que os Açores ou a
Índia. Devido a seu reduzido território, as ilhas podiam ser facilmente conquistadas, como, aliás,
se vira durante a tentativa independentista do prior do Crato,
que, a despeito do apoio naval
francês e inglês, não pudera resistir às armas de Felipe 2�. Quanto à
Índia, tinha os ônus da navegação
demorada e perigosa. O Brasil era
assim quem possuía o melhor dos
dois mundos. Sua navegação era
fácil, segura e rápida, de modo que
"com muita facilidade podem (os
portugueses) cá vir e tornar quando quiserem ou ficar-se de morada". Suas dimensões permitiriam
abrigar toda a população do Reino, com o que o tema do Brasil refúgio entroncava-se com outro tópico caro também aos cronistas do
primeiro século, o da construção
de um "grande império" na
América. O que frei Vicente não
podia prever é que, decorrido
pouco mais de um decênio da redação da sua obra, a restauração
portuguesa, isolando internacionalmente Portugal, recolocaria na
ordem do dia a velha idéia do reinado de d. João 3�. Pois a verdade é
que o projeto de transmigração da
família real para o Brasil, finalmente realizado no século 19, tem
uma longa pré-história.
Dele, se cogitará concretamente
no reinado de d. João 4� e depois
na regência da sua viúva, d. Luísa
de Gusmão. Quando da sua segunda missão a Paris (1646-1649), o
marquês de Niza foi instruído a
negociar o casamento do herdeiro
do trono, o príncipe d. Teodósio,
com a prima de Luís 14�, a Grande
Mademoiselle. Mas a reação francesa foi negativa, mesmo quando
d. João 4� propôs abdicar em favor
do filho, em cuja menoridade a regência seria exercida pelo almejado sogro, o duque de Orléans, ao
passo que o monarca ficaria com o
domínio dos Açores e do Estado
do Maranhão e Grão-Pará, a serem constituídos em reino autônomo.
Do segundo projeto de retirada
da família real para o Brasil no decurso da guerra da Restauração,
sabe-se por uma carta do padre
Antônio Vieira que a nomeação de
Francisco de Brito Freyre para o
governo de Pernambuco
(1661-1663) resultara da preocupação da Rainha Regente de "prevenir a seus filhos (inclusive d. Afonso 6�, na menoridade) uma retirada segura, no caso em que algum
sucesso adverso (isto é, a reconquista de Portugal pela Espanha),
que então muito se temia, necessitasse deste último remédio". Vieira, que então se encontrava missionando no Maranhão, recebeu a
ordem de seguir para Pernambuco, o que só não fez devido à revolta dos colonos paraenses, que o retiveram em Belém. Ainda segundo
o jesuíta, d. João 4� recomendara o
projeto em papel encontrado,
após seu falecimento, "em uma
gaveta secreta, rubricado de sua
real mão com três cruzes". A idéia
só foi então descartada graças à assinatura do tratado de aliança luso-britânico de 1661.
Escusado assinalar que esse papel messiânico atribuído ao Brasil
era visto igualmente em termos de
promoção econômica e social da
população do Reino. O tópico já se
encontra em Gândavo, cujo tratado se propunha a propagandear
"a fertilidade e abundância" da
nova terra junto às "muitas pessoas que nestes Reinos vivem com
pobreza e não duvidem escolhê-la
para seu remédio", pois graças a
sua fartura ela era especialmente
acolhedora, tanto assim que os colonos se mostravam mais largos
que os habitantes do Reino no comer e no vestir, além de mais generosos nas doações pias. De Pernambuco, frisava Gabriel Soares
de Sousa, haviam voltado ricos a
Portugal muitos que ali haviam
aportado sem eira nem beira nem
ramo de figueira.
É conhecida a história narrada
por frei Vicente a respeito de certo
homem de Leiria, punido pelo seu
bispo com a sentença irônica de
que "vá degredado por três anos
para o Brasil, donde tornará rico e
honrado". O indivíduo em questão foi mandado para o Rio Grande do Norte, onde, a despeito de se
achar na "pior (terra) do Brasil",
fez fortuna, tornando-se e sua mulher compadres do capitão-mor,
com ele viajando de regresso ao
Reino, e, signo da promoção social, "comendo todos a uma mesa, passeando ele ombro com ombro com o capitão, assentando-se
a mulher no mesmo estrado que a
fidalga, como eu as vi em Pernambuco, onde foram tomar navio para se embarcarem". O "brasileiro" das novelas de Camilo Castello Branco é apenas a derradeira
encarnação do mito da terra onde
cresce a árvore das patacas.
Aliás, ninguém mais autorizado
para glosar o tópico do que Gaspar
Dias Ferreira, lisboeta que chegara
pobre a Pernambuco e aí se tornara homem rico e honrado, senhor
de dois engenhos, conselheiro do
conde de Nassau e protegido do
vice-rei da Bahia, conde de Montalvão. No seu parecer sobre a
compra do Nordeste aos holandeses (1645), Gaspar chamava o Brasil de "jardim do Reino e albergaria dos seus súditos", pois "o
português a quem acontece decair
de fortuna, é para lá que se dirige". E aduzia: "Outrora deliberou-se em Portugal, como consta
de sua história, elevar o Brasil a
Reino, indo para lá o Rei, tão
grande é a capacidade daquele
país. Portugal não tem outra região mais fértil, mais próxima
nem mais frequentada, nem também os seus vassalos melhor e
mais seguro refúgio do que o Brasil". Decorridos poucos anos, será
esta a solução que d. João 4�, como
vimos, recomendará à sua mulher, para a eventualidade de invasão espanhola; e século e meio depois adotará d. João 6�, acuado pelo exército napoleônico.
Evaldo Cabral de Mello é historiador e diplomata aposentado. É autor, entre outros, de "Rubro Veio", "Olinda Restaurada" e "O Negócio do
Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste,
1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
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