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A última vida
Vítima de câncer nos anos 70 e nos anos 90, a autora de "Aids e Suas Metáforas" acreditou até
o final que conseguiria superar a doença mais uma vez;
o filho relembra sua cumplicidade com a fantasia
da mãe
Divulgação
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A escritora norte-americana Susan Sontag em Sarajevo, na atual Bósnia-Herzegóvina, em 1993, durante a Guerra da Bósnia
DAVID RIEFF
Quando minha mãe,
Susan Sontag, foi
diagnosticada em
2004 com síndrome mielodisplástica, precursora de uma leucemia de rápida evolução, ela já
tinha sobrevivido em 1975
-apesar de os médicos demonstrarem pouca esperança
de que se salvasse- a um câncer de seio de fase 4, que se espalhou pelo sistema linfático, e
a um sarcoma uterino em 1998.
"Existem alguns sobreviventes, mesmo dos piores cânceres", costumava dizer durante
os quase dois anos em que viveu em um regime extremamente duro, mesmo para a
época, de quimioterapia para o
câncer de seio. "Por que não
posso ser um deles?"
Depois daquele primeiro
câncer, mutilada, mas viva (a
operação a que foi submetida
retirou não apenas um dos
seios, mas os músculos da parede do peito e parte de uma axila), ela escreveu seu desafiador
"Doença como Metáfora".
Em parte estudo literário,
em parte polêmica, foi uma súplica fervorosa para tratar a
doença como doença, como loteria genética, e não o resultado de inibição sexual, repressão dos sentimentos e todo o
resto -aquela tórrida infusão
de Wilhelm Reich em baixo nível e a mistura de masoquismo
e arrogância que diz que, de
certa forma, as pessoas atraem
a doença para si mesmas.
No livro, minha mãe comparou o eterno estigma ligado ao
câncer com a romantização da
tuberculose na literatura do século 19 ("La Bohème" e tudo
mais). Nos cadernos para o livro que encontrei depois de
sua morte, descobri uma anotação que me fez congelar.
"Leucemia, o único câncer
"limpo'", dizia. Doença limpa,
de fato. Minha pobre mãe: pensar no que a esperava...
Pavor da morte
Ela tinha tal pavor da morte
que não suportava falar a respeito, mas também era obcecada por ela. Seu segundo romance chama-se na verdade "Death
Kit" e termina em um ossário.
Ela era uma visitante inveterada de cemitérios. E tinha
uma caveira humana na prateleira atrás de sua escrivaninha,
entre as fotografias dos escritores que admirava (não havia fotos da família) e vários objetos
de enfeite. "Eu pensaria diferentemente sobre ele se soubesse que o crânio havia sido de
um homem ou de uma mulher?", ela escreveu em um de
seus diários.
Obcecada pela morte, mas
nunca resignada: pelo menos é
assim que sempre pensei nela.
E isso lhe deu a resolução para se submeter a qualquer tratamento, por mais brutal, por
menores que fossem suas chances. Na década de 1970, ela
apostou e ganhou; em 2004,
apostou e perdeu.
Setenta e um anos não são
42, e, embora o câncer de seio
seja terrível e muitas vezes letal, as curas não são raras, mesmo em casos avançados.
Mas a coisa impiedosa na síndrome mielodisplástica é que,
ao contrário do câncer de seio e
muitos outros cânceres, incluindo alguns do sangue, ela
não regride.
Quando se é diagnosticado
com MDS, como minha mãe rapidamente descobriu, horrorizada, realmente só existe uma
esperança -receber um transplante de células-tronco adultas, em que a medula óssea defeituosa do paciente é substituída por células da medula de
uma pessoa saudável.
O que piorava a situação de
minha mãe era que, mesmo nos
hospitais mais experimentais,
raramente se realizava esse
transplante em pacientes com
mais de 50 anos. E, até onde eu
pude descobrir, surfando na
web tentando me informar rapidamente sobre a MDS, os casos de sucesso em pacientes
com mais de 60 eram ainda
mais raros. Em outras palavras,
as chances de sobrevivência de
minha mãe eram mínimas.
Diante desse prognóstico,
suponho que ela poderia ter decidido simplesmente aceitar
que ia morrer.
Mas minha mãe estava tão
distante quanto seria possível a
um ser humano estar da famosa e influente teoria da morte
em cinco fases -negação, raiva,
barganha, depressão e finalmente aceitação-, da doutora
Elisabeth Kübler-Ross.
Ela estivera doente na maior
parte de sua vida, desde uma
terrível asma na infância até os
três cânceres. E a morte não lhe
era estranha: estivera rodeada
por ela nos hospitais em que foi
tratada, nos pavilhões da Aids
em Nova York na década de
1980, onde viu três de seus melhores amigos morrerem, e em
zonas de guerra como o Vietnã
e Sarajevo [na atual Bósnia-Herzegóvina].
Mas nenhum grau de familiaridade poderia reduzir a intensidade com que a idéia da morte
era inaceitável para ela.
Na sua visão, a mortalidade
parecia tão injusta quanto o assassinato. Subjetivamente,
apenas não havia como pudesse aceitá-la. Não acho que isso
fosse negação no sentido do
"psicoblablablá" de Kübler-Ross. Minha mãe não era louca;
sabia perfeitamente bem que ia
morrer. Mas simplesmente jamais poderia se reconciliar
com essa idéia.
Sem vacilo
Então, para os que a conheciam bem, não foi nada surpreendente sua decisão de tentar um transplante.
A vida, a oportunidade de viver mais alguns anos, era o que
ela queria, como disse ao seu
médico principal, Stephen Nimer, que a havia advertido de
que um transplante de medula
causa sofrimento, e não "qualidade de vida".
Nessa atitude ela nunca vacilou, apesar de praticamente tudo o que pudesse dar errado depois do transplante ter dado errado, a tal ponto que, quando
morreu, seu corpo, virtualmente do interior da boca até a sola
dos pés, estava coberto de feridas e hematomas. Mas acredito
que, mesmo que ela pudesse
compreender totalmente desde o início o quanto iria sofrer,
ainda assim teria rolado os dados e arriscado tudo por um
pouco mais de tempo neste
mundo -principalmente mais
tempo para escrever.
Em sua mente, mesmo aos 71
anos, minha mãe estava sempre recomeçando, figurativa e
literalmente virando uma nova
página.
Para uma escritora tão ambivalente (para dizer com moderação) sobre sua própria americanidade quanto ela foi desde a
infância, esse era o mais americano dos atributos -a exemplificação da frase de F. Scott Fitzgerald de que "não há segundos
atos na vida dos americanos".
Mas, se minha mãe foi firme
em sua decisão de tentar sobreviver a qualquer custo, ela compreendia perfeitamente bem a
real gravidade de um diagnóstico de MDS. Sobre essa questão,
até um olhar rápido nos sites
relacionados na web não deixa
nenhuma dúvida.
Naqueles primeiros dias após
ter entendido que estava mais
uma vez doente, ficou simplesmente desesperada. Mas seu
desejo de viver era tão poderoso, tão mais forte que qualquer
realidade adversa, que, sem negar a letalidade da MDS, decidiu acreditar que poderia mais
uma vez ser a exceção, como
quando fora atacada pelo câncer de seio, três décadas antes.
Seria isso negação da teoria
de Kübler-Ross?
Entendo que poderia ser descrita dessa maneira, mas
não acredito. A recusa de minha mãe em aceitar a morte
não era uma "fase" no processo
que levava primeiro à aceitação
e depois à extinção propriamente dita. Estava no âmago de
sua consciência.
Ela estava determinada a viver porque simplesmente não
podia se imaginar cedendo ao
imperativo de morrer, como
me disse certa vez, muito antes
do câncer terminal. Acredito,
como já se disse sobre Samuel
Beckett, que sua briga também
era com o Livro do Gênese.
Mas ela não poderia manter
sozinha essa determinação de
lutar pela vida, contra todas as
probabilidades. Foi aí que as
pessoas mais próximas entraram, foi quando eu entrei, sem
falsa modéstia, pois era uma situação que eu considerava quase insuportável.
Para que acreditasse que seria curada, minha mãe precisava acreditar que seus entes
queridos também estavam convencidos disso. Virtualmente,
desde o início da doença, o que
eu senti que ela queria de mim
-nunca disse isso explicitamente, mas a mensagem era
bastante clara- era encontrar
coisas esperançosas para dizer
sobre suas perspectivas.
Queria maneiras otimistas,
ou pelo menos não tão pessimistas, de construir até as más
notícias -uma espécie de torcida moral e apoio para sua esperança, crença, chame-se como
quiser, em que, apesar de sua
idade avançada e da citogenética espetacularmente difícil de
seu caso particular, ela seria
mais uma vez especial, como
costumava dizer, e venceria as
estatísticas.
Para ser honesto, não posso
dizer que eu realmente tenha
acreditado que minha mãe tinha muita chance de vencer.
Mas, igualmente, nunca me
ocorreu de fato fazer qualquer
outra coisa senão reforçar e incentivar sua crença de que conseguiria sobreviver.
Terror psicológico
Nas primeiras semanas depois do diagnóstico, mas antes
de ela tomar a decisão de ir ao
Centro de Câncer Fred Hutchinson, em Seattle, para receber o transplante, eu ficava
pensando que, diante do fato de
suas probabilidades serem tão
pequenas e de que sofreria tanto, talvez eu devesse ser franco.
Mas ela de tal modo não queria
ouvir isso que eu nunca cheguei
realmente perto de lhe dizer.
Minha mãe tinha um medo
enorme de morrer. Pensava
que, em vez de morrer em agonia física, ela teria morrido em
terror psicológico, deprimida e
inconsolável como ficou nos
primeiros dias depois do diagnóstico, até que se aprumou.
E, é claro, sempre havia a
possibilidade muito distante de
que conseguisse -motivo pelo
qual os médicos concordaram
com seu desejo de realizar o
transplante.
Como essas eram as opções
que eu via, para mim era possível, embora de modo algum fácil, decidir não ser honesto com
ela e, na verdade, preparar um
relatório de advogado segundo
o argumento jesuítico, apoiando o que minha mãe claramente queria escutar.
Ser seu chefe de torcida até o
túmulo -era assim que às vezes eu via a coisa. Acreditar que
não temos alternativa não é a
mesma coisa que acreditar que
estamos agindo certo.
E é essa a questão: eu agi certo? Minhas dúvidas nunca me
deixarão, como não deveriam,
mas minha resposta não pode
ser totalmente honesta. Estou
convencido de que fiz o que implicitamente ela me pedia. Obviamente, sei que não é raro os
pais se recusarem a falar com
os filhos sobre suas próprias
mortes.
Eu estava em seu quarto de
hospital, meses depois do
transplante, quando ela não
conseguia mais se virar na cama sem ajuda e estava presa a
300 metros de tubos que lhe infundiam substâncias químicas
que a mantinham viva, mas não
podiam fazer mais nada para
melhorar seu estado, quando os
médicos entraram para dizer
que o transplante tinha fracassado e que a leucemia estava
em pleno progresso.
Ela gritou de surpresa e de
terror. "Mas isso quer dizer que
estou morrendo", repetia, abanando os braços macilentos e
frágeis e batendo-os no colchão. Então não me digam que
ela sabia desde o início.
O paradoxo terrível é que foi
ao ver a profundidade de seu
medo e testemunhar sua recusa em aceitar o que estava lhe
acontecendo -até as últimas
duas semanas de vida, quando
sabia que ia morrer, mesmo
que não aceitasse, ela continuava a pedir algum novo tratamento experimental- que me
tranqüilizei de que a opção que
fiz foi defensável.
Uso essa palavra conscientemente. Pois uma escolha que
envolve uma cumplicidade na
decisão de se submeter a tanta
dor física, por mais que tenha
sido experimentada por sua
vontade e conscientemente
apoiada por mim, certamente
nunca poderá ser apenas chamada de certa. Não é como se
eu fosse passar por todo aquele
sofrimento.
É claro que eu estava abalado. Todos estamos, eu acho, já
que nada realmente nos prepara para a doença mortal de uma
pessoa amada. Falar sobre ela,
pensar nela, tentando concebê-la abstratamente, ou mesmo lidar com pessoas doentes menos próximas de nós -nenhuma dessas coisas parece, afinal,
ser decisiva para o que você
tem que fazer.
Então eu volto à frase que ficou circulando na minha cabeça durante os nove meses da
morte de minha mãe: "Ela tem
o direito à sua própria morte".
Mas uma coisa é acreditar,
como eu fazia e faço, que minha
mãe não devia nada para mim
ou para qualquer outra pessoa
em relação à questão de sua
morte. Outra é fingir que as decisões que ela tomou e o modo
como ela me envolveu nessas
decisões não tiveram um preço.
Ao decidir -se é que foi algo
tão consciente- ir para o túmulo recusando-se a aceitar
que estava morrendo, até as
duas últimas semanas antes da
morte, minha mãe tornou impossível para os que estavam
perto dela uma despedida adequada.
Era impossível até dizer -de
uma maneira profunda- que
eu a amava, porque fazer isso
teria significado dizer: "Você
está morrendo".
Então também não havia a
menor possibilidade de uma
conversa real sobre o passado,
já que tudo o que ela realmente
queria era se concentrar no futuro, em "todas as coisas que
preciso fazer quando finalmente sair desta cama de hospital",
como costumava dizer enquanto esteve deitada naquele leito
do qual nunca mais se levantou.
Teria sido mais fácil para
mim? Certamente. Mas o que
poderia ter sido útil para mim
depois que ela partiu seria aterrorizante para ela.
Eu sentia que tinha de acatá-la. Mas não foi fácil na época e,
de certa maneira, é ainda mais
difícil hoje, três anos e meio depois de sua morte.
Na época eu entendia que,
para ajudá-la, não devia pensar
no que estava praticamente
certo de que aconteceria -não
apenas que ela não sobreviveria
como também tinha pouca esperança de ter o que às vezes se
chama de "uma boa morte", se é
que isso existe.
Meu palpite, em todo caso, é
que essa conversa de boa morte
tem pouco a ver com os que estão morrendo e tudo a ver com
consolar seus próximos e também os médicos e enfermeiros
que os trataram.
Distanciamento
Mas, para mim, não pensar
no que sabia significava até certo ponto não pensar nada, porque, se estivesse realmente
pensando o tempo todo e permitindo-me estar totalmente
alerta, jamais teria agüentado.
Havia ali um certo conforto
amortecido. Pois eu queria ter
certos tipos de conversa com
ela, queria lhe contar coisas e
perguntar outras.
Não pensar tornava igualmente insuportável o conhecimento de que isso provavelmente nunca aconteceria. A
agonia dela fazia tudo parecer
trivial e sem peso, em comparação. É menos fácil se reconciliar hoje. Não estou nem um
pouco convencido de ser um
bom analista dos meus próprios motivos, mas, desde que
escrevi minha memória sobre a
morte de minha mãe, me perguntei por que o fiz.
Nunca tive nenhuma inclinação confessional e, durante a
doença de minha mãe, eu conscientemente decidi não tomar
notas porque achava que fazê-lo seria procurar -e talvez conseguir- um certo distanciamento que eu não queria nem
achava estar no meu direito. E,
durante muito tempo depois da
morte dela, acreditei que não
escreveria nada.
Ainda acredito que não o teria feito se tivesse conseguido
me despedir adequadamente
de minha mãe. Não estou falando sobre o que, nos EUA, é chamado de "closure" [encerramento], a idéia de que existe alguma maneira de passar um
traço psicológico embaixo de
um acontecimento e, como diz
a expressão, "seguir em frente".
Não acredito que exista essa
coisa, e, se houver, não está ao
meu alcance. Mas não finjo que
servi a alguém exceto a mim
mesmo. As memórias, como os
cemitérios, são para os vivos.
O texto acima é parte de "Swimming in a Sea of
Death - A Son's Memoir" (Nadando em um Mar
de Morte - Memória de um Filho, ed. Granta, 192
págs., 12,99 libras, R$ 42), de David Rieff.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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