São Paulo, domingo, 15 de junho de 2008

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A última vida

Vítima de câncer nos anos 70 e nos anos 90, a autora de "Aids e Suas Metáforas" acreditou até o final que conseguiria superar a doença mais uma vez; o filho relembra sua cumplicidade com a fantasia da mãe

Divulgação
A escritora norte-americana Susan Sontag em Sarajevo, na atual Bósnia-Herzegóvina, em 1993, durante a Guerra da Bósnia

DAVID RIEFF

Quando minha mãe, Susan Sontag, foi diagnosticada em 2004 com síndrome mielodisplástica, precursora de uma leucemia de rápida evolução, ela já tinha sobrevivido em 1975 -apesar de os médicos demonstrarem pouca esperança de que se salvasse- a um câncer de seio de fase 4, que se espalhou pelo sistema linfático, e a um sarcoma uterino em 1998.
"Existem alguns sobreviventes, mesmo dos piores cânceres", costumava dizer durante os quase dois anos em que viveu em um regime extremamente duro, mesmo para a época, de quimioterapia para o câncer de seio. "Por que não posso ser um deles?"
Depois daquele primeiro câncer, mutilada, mas viva (a operação a que foi submetida retirou não apenas um dos seios, mas os músculos da parede do peito e parte de uma axila), ela escreveu seu desafiador "Doença como Metáfora".
Em parte estudo literário, em parte polêmica, foi uma súplica fervorosa para tratar a doença como doença, como loteria genética, e não o resultado de inibição sexual, repressão dos sentimentos e todo o resto -aquela tórrida infusão de Wilhelm Reich em baixo nível e a mistura de masoquismo e arrogância que diz que, de certa forma, as pessoas atraem a doença para si mesmas.
No livro, minha mãe comparou o eterno estigma ligado ao câncer com a romantização da tuberculose na literatura do século 19 ("La Bohème" e tudo mais). Nos cadernos para o livro que encontrei depois de sua morte, descobri uma anotação que me fez congelar. "Leucemia, o único câncer "limpo'", dizia. Doença limpa, de fato. Minha pobre mãe: pensar no que a esperava...

Pavor da morte
Ela tinha tal pavor da morte que não suportava falar a respeito, mas também era obcecada por ela. Seu segundo romance chama-se na verdade "Death Kit" e termina em um ossário.
Ela era uma visitante inveterada de cemitérios. E tinha uma caveira humana na prateleira atrás de sua escrivaninha, entre as fotografias dos escritores que admirava (não havia fotos da família) e vários objetos de enfeite. "Eu pensaria diferentemente sobre ele se soubesse que o crânio havia sido de um homem ou de uma mulher?", ela escreveu em um de seus diários.
Obcecada pela morte, mas nunca resignada: pelo menos é assim que sempre pensei nela.
E isso lhe deu a resolução para se submeter a qualquer tratamento, por mais brutal, por menores que fossem suas chances. Na década de 1970, ela apostou e ganhou; em 2004, apostou e perdeu.
Setenta e um anos não são 42, e, embora o câncer de seio seja terrível e muitas vezes letal, as curas não são raras, mesmo em casos avançados.
Mas a coisa impiedosa na síndrome mielodisplástica é que, ao contrário do câncer de seio e muitos outros cânceres, incluindo alguns do sangue, ela não regride.
Quando se é diagnosticado com MDS, como minha mãe rapidamente descobriu, horrorizada, realmente só existe uma esperança -receber um transplante de células-tronco adultas, em que a medula óssea defeituosa do paciente é substituída por células da medula de uma pessoa saudável.
O que piorava a situação de minha mãe era que, mesmo nos hospitais mais experimentais, raramente se realizava esse transplante em pacientes com mais de 50 anos. E, até onde eu pude descobrir, surfando na web tentando me informar rapidamente sobre a MDS, os casos de sucesso em pacientes com mais de 60 eram ainda mais raros. Em outras palavras, as chances de sobrevivência de minha mãe eram mínimas.
Diante desse prognóstico, suponho que ela poderia ter decidido simplesmente aceitar que ia morrer.
Mas minha mãe estava tão distante quanto seria possível a um ser humano estar da famosa e influente teoria da morte em cinco fases -negação, raiva, barganha, depressão e finalmente aceitação-, da doutora Elisabeth Kübler-Ross.
Ela estivera doente na maior parte de sua vida, desde uma terrível asma na infância até os três cânceres. E a morte não lhe era estranha: estivera rodeada por ela nos hospitais em que foi tratada, nos pavilhões da Aids em Nova York na década de 1980, onde viu três de seus melhores amigos morrerem, e em zonas de guerra como o Vietnã e Sarajevo [na atual Bósnia-Herzegóvina].
Mas nenhum grau de familiaridade poderia reduzir a intensidade com que a idéia da morte era inaceitável para ela.
Na sua visão, a mortalidade parecia tão injusta quanto o assassinato. Subjetivamente, apenas não havia como pudesse aceitá-la. Não acho que isso fosse negação no sentido do "psicoblablablá" de Kübler-Ross. Minha mãe não era louca; sabia perfeitamente bem que ia morrer. Mas simplesmente jamais poderia se reconciliar com essa idéia.

Sem vacilo
Então, para os que a conheciam bem, não foi nada surpreendente sua decisão de tentar um transplante.
A vida, a oportunidade de viver mais alguns anos, era o que ela queria, como disse ao seu médico principal, Stephen Nimer, que a havia advertido de que um transplante de medula causa sofrimento, e não "qualidade de vida".
Nessa atitude ela nunca vacilou, apesar de praticamente tudo o que pudesse dar errado depois do transplante ter dado errado, a tal ponto que, quando morreu, seu corpo, virtualmente do interior da boca até a sola dos pés, estava coberto de feridas e hematomas. Mas acredito que, mesmo que ela pudesse compreender totalmente desde o início o quanto iria sofrer, ainda assim teria rolado os dados e arriscado tudo por um pouco mais de tempo neste mundo -principalmente mais tempo para escrever.
Em sua mente, mesmo aos 71 anos, minha mãe estava sempre recomeçando, figurativa e literalmente virando uma nova página.
Para uma escritora tão ambivalente (para dizer com moderação) sobre sua própria americanidade quanto ela foi desde a infância, esse era o mais americano dos atributos -a exemplificação da frase de F. Scott Fitzgerald de que "não há segundos atos na vida dos americanos".
Mas, se minha mãe foi firme em sua decisão de tentar sobreviver a qualquer custo, ela compreendia perfeitamente bem a real gravidade de um diagnóstico de MDS. Sobre essa questão, até um olhar rápido nos sites relacionados na web não deixa nenhuma dúvida.
Naqueles primeiros dias após ter entendido que estava mais uma vez doente, ficou simplesmente desesperada. Mas seu desejo de viver era tão poderoso, tão mais forte que qualquer realidade adversa, que, sem negar a letalidade da MDS, decidiu acreditar que poderia mais uma vez ser a exceção, como quando fora atacada pelo câncer de seio, três décadas antes.
Seria isso negação da teoria de Kübler-Ross?
Entendo que poderia ser descrita dessa maneira, mas não acredito. A recusa de minha mãe em aceitar a morte não era uma "fase" no processo que levava primeiro à aceitação e depois à extinção propriamente dita. Estava no âmago de sua consciência.
Ela estava determinada a viver porque simplesmente não podia se imaginar cedendo ao imperativo de morrer, como me disse certa vez, muito antes do câncer terminal. Acredito, como já se disse sobre Samuel Beckett, que sua briga também era com o Livro do Gênese.
Mas ela não poderia manter sozinha essa determinação de lutar pela vida, contra todas as probabilidades. Foi aí que as pessoas mais próximas entraram, foi quando eu entrei, sem falsa modéstia, pois era uma situação que eu considerava quase insuportável.
Para que acreditasse que seria curada, minha mãe precisava acreditar que seus entes queridos também estavam convencidos disso. Virtualmente, desde o início da doença, o que eu senti que ela queria de mim -nunca disse isso explicitamente, mas a mensagem era bastante clara- era encontrar coisas esperançosas para dizer sobre suas perspectivas.
Queria maneiras otimistas, ou pelo menos não tão pessimistas, de construir até as más notícias -uma espécie de torcida moral e apoio para sua esperança, crença, chame-se como quiser, em que, apesar de sua idade avançada e da citogenética espetacularmente difícil de seu caso particular, ela seria mais uma vez especial, como costumava dizer, e venceria as estatísticas.
Para ser honesto, não posso dizer que eu realmente tenha acreditado que minha mãe tinha muita chance de vencer.
Mas, igualmente, nunca me ocorreu de fato fazer qualquer outra coisa senão reforçar e incentivar sua crença de que conseguiria sobreviver.

Terror psicológico
Nas primeiras semanas depois do diagnóstico, mas antes de ela tomar a decisão de ir ao Centro de Câncer Fred Hutchinson, em Seattle, para receber o transplante, eu ficava pensando que, diante do fato de suas probabilidades serem tão pequenas e de que sofreria tanto, talvez eu devesse ser franco.
Mas ela de tal modo não queria ouvir isso que eu nunca cheguei realmente perto de lhe dizer.
Minha mãe tinha um medo enorme de morrer. Pensava que, em vez de morrer em agonia física, ela teria morrido em terror psicológico, deprimida e inconsolável como ficou nos primeiros dias depois do diagnóstico, até que se aprumou.
E, é claro, sempre havia a possibilidade muito distante de que conseguisse -motivo pelo qual os médicos concordaram com seu desejo de realizar o transplante.
Como essas eram as opções que eu via, para mim era possível, embora de modo algum fácil, decidir não ser honesto com ela e, na verdade, preparar um relatório de advogado segundo o argumento jesuítico, apoiando o que minha mãe claramente queria escutar.
Ser seu chefe de torcida até o túmulo -era assim que às vezes eu via a coisa. Acreditar que não temos alternativa não é a mesma coisa que acreditar que estamos agindo certo.
E é essa a questão: eu agi certo? Minhas dúvidas nunca me deixarão, como não deveriam, mas minha resposta não pode ser totalmente honesta. Estou convencido de que fiz o que implicitamente ela me pedia. Obviamente, sei que não é raro os pais se recusarem a falar com os filhos sobre suas próprias mortes.
Eu estava em seu quarto de hospital, meses depois do transplante, quando ela não conseguia mais se virar na cama sem ajuda e estava presa a 300 metros de tubos que lhe infundiam substâncias químicas que a mantinham viva, mas não podiam fazer mais nada para melhorar seu estado, quando os médicos entraram para dizer que o transplante tinha fracassado e que a leucemia estava em pleno progresso.
Ela gritou de surpresa e de terror. "Mas isso quer dizer que estou morrendo", repetia, abanando os braços macilentos e frágeis e batendo-os no colchão. Então não me digam que ela sabia desde o início.
O paradoxo terrível é que foi ao ver a profundidade de seu medo e testemunhar sua recusa em aceitar o que estava lhe acontecendo -até as últimas duas semanas de vida, quando sabia que ia morrer, mesmo que não aceitasse, ela continuava a pedir algum novo tratamento experimental- que me tranqüilizei de que a opção que fiz foi defensável.
Uso essa palavra conscientemente. Pois uma escolha que envolve uma cumplicidade na decisão de se submeter a tanta dor física, por mais que tenha sido experimentada por sua vontade e conscientemente apoiada por mim, certamente nunca poderá ser apenas chamada de certa. Não é como se eu fosse passar por todo aquele sofrimento.
É claro que eu estava abalado. Todos estamos, eu acho, já que nada realmente nos prepara para a doença mortal de uma pessoa amada. Falar sobre ela, pensar nela, tentando concebê-la abstratamente, ou mesmo lidar com pessoas doentes menos próximas de nós -nenhuma dessas coisas parece, afinal, ser decisiva para o que você tem que fazer.
Então eu volto à frase que ficou circulando na minha cabeça durante os nove meses da morte de minha mãe: "Ela tem o direito à sua própria morte".
Mas uma coisa é acreditar, como eu fazia e faço, que minha mãe não devia nada para mim ou para qualquer outra pessoa em relação à questão de sua morte. Outra é fingir que as decisões que ela tomou e o modo como ela me envolveu nessas decisões não tiveram um preço.
Ao decidir -se é que foi algo tão consciente- ir para o túmulo recusando-se a aceitar que estava morrendo, até as duas últimas semanas antes da morte, minha mãe tornou impossível para os que estavam perto dela uma despedida adequada.
Era impossível até dizer -de uma maneira profunda- que eu a amava, porque fazer isso teria significado dizer: "Você está morrendo".
Então também não havia a menor possibilidade de uma conversa real sobre o passado, já que tudo o que ela realmente queria era se concentrar no futuro, em "todas as coisas que preciso fazer quando finalmente sair desta cama de hospital", como costumava dizer enquanto esteve deitada naquele leito do qual nunca mais se levantou.
Teria sido mais fácil para mim? Certamente. Mas o que poderia ter sido útil para mim depois que ela partiu seria aterrorizante para ela.
Eu sentia que tinha de acatá-la. Mas não foi fácil na época e, de certa maneira, é ainda mais difícil hoje, três anos e meio depois de sua morte. Na época eu entendia que, para ajudá-la, não devia pensar no que estava praticamente certo de que aconteceria -não apenas que ela não sobreviveria como também tinha pouca esperança de ter o que às vezes se chama de "uma boa morte", se é que isso existe.
Meu palpite, em todo caso, é que essa conversa de boa morte tem pouco a ver com os que estão morrendo e tudo a ver com consolar seus próximos e também os médicos e enfermeiros que os trataram.

Distanciamento
Mas, para mim, não pensar no que sabia significava até certo ponto não pensar nada, porque, se estivesse realmente pensando o tempo todo e permitindo-me estar totalmente alerta, jamais teria agüentado.
Havia ali um certo conforto amortecido. Pois eu queria ter certos tipos de conversa com ela, queria lhe contar coisas e perguntar outras.
Não pensar tornava igualmente insuportável o conhecimento de que isso provavelmente nunca aconteceria. A agonia dela fazia tudo parecer trivial e sem peso, em comparação. É menos fácil se reconciliar hoje. Não estou nem um pouco convencido de ser um bom analista dos meus próprios motivos, mas, desde que escrevi minha memória sobre a morte de minha mãe, me perguntei por que o fiz.
Nunca tive nenhuma inclinação confessional e, durante a doença de minha mãe, eu conscientemente decidi não tomar notas porque achava que fazê-lo seria procurar -e talvez conseguir- um certo distanciamento que eu não queria nem achava estar no meu direito. E, durante muito tempo depois da morte dela, acreditei que não escreveria nada.
Ainda acredito que não o teria feito se tivesse conseguido me despedir adequadamente de minha mãe. Não estou falando sobre o que, nos EUA, é chamado de "closure" [encerramento], a idéia de que existe alguma maneira de passar um traço psicológico embaixo de um acontecimento e, como diz a expressão, "seguir em frente".
Não acredito que exista essa coisa, e, se houver, não está ao meu alcance. Mas não finjo que servi a alguém exceto a mim mesmo. As memórias, como os cemitérios, são para os vivos.


O texto acima é parte de "Swimming in a Sea of Death - A Son's Memoir" (Nadando em um Mar de Morte - Memória de um Filho, ed. Granta, 192 págs., 12,99 libras, R$ 42), de David Rieff. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

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