|
Texto Anterior | Índice
Sóbrio e erudito, "K.", do crítico Roberto Calasso, interpreta os romances do escritor tcheco a partir de sua biografia
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
P
oucos textos na história da literatura
têm uma fortuna crítica tão grande quanto a história do homem que chega "diante da lei"
e ali permanece durante toda a
vida, proibido de passar por um
guardião. Trecho central de "O
Processo", de Franz Kafka, a
narrativa é assim explicada por
Roberto Calasso em "K." (Cia.
das Letras, trad. Samuel Titan
Jr., 296 págs., R$ 46), ensaio
publicado em 2002 sobre o escritor tcheco e agora lançado
no Brasil:
"São muitos os comentários
e glosas da história (...). A mais
longa e convincente foi escrita
pelo próprio Kafka -e chama-se "O Castelo". Para entendê-la,
é preciso substituir na história
a palavra "lei" pela palavra "castelo". E então ler "O Castelo"."
Há talvez algo de contraditório em um projeto analítico
que, ao ser lido, sugere que se
retorne à obra interpretada para "entendê-la": nada contra,
na verdade, esse caminho de
retorno, que pode ser muito
eficaz. Mas fica a desconfiança
de que a frase de efeito se esgota no efeito e que, efetivamente, a obra de um autor como
Kafka continua bastante resistente à crítica.
Na prática, ela está sujeita
com muita freqüência a leituras estapafúrdias, nas quais tudo é alegoria de tudo, ou a paráfrases construídas com maior
ou menor grau de sofisticação,
em que enredos são rearranjados e recontados na tentativa
de, com isso, iluminar aspectos
até então despercebidos.
É claro que a segunda opção
deve ter um rendimento maior.
O problema é que, no caso de
Kafka, há uma compulsão quase irresistível em aliar a isso o
confronto com as cartas e os
diários e a tomá-los não "apenas" como construções literárias mas como balizas a guiar a
compreensão, como se fosse
possível a todo instante reescrever "O Outro Processo" [ed.
Garamond], de Elias Canetti.
Um dos pontos que complicam o livro de Calasso é esse.
Ele até constrói argumentos
interessantes, principalmente
no início do volume, quando
tenta demonstrar que "O Processo" e "O Castelo" são romances muito próximos (no
primeiro, Josef K. desejaria
subtrair-se à "eleição"; no segundo, K. desejaria a "eleição":
"ser escolhido, ser condenado:
duas modalidades do mesmo
procedimento"), ou em suas
aproximações entre as várias
mulheres retratadas nos textos
e ao analisar como, com elas, o
escritor engendra situações de
carga erótica intensa.
Exagero
Mas o fato é que há muito
exagero nas relações entre ficção e biografia ("... Nesses termos Kafka falava de seu porão a
Felice, para assustá-la; e nesses
termos Pepi falava do quarto
das moças a K., para atraí-lo";
ou "a situação de Josef K. no
início do processo é muito semelhante à de Franz Kafka na
primavera de 1908...").
Outro ponto problemático
(mas admito que isso pode ser
cisma do leitor, aliás responsável pelo grifo abaixo) é o surgimento, vez ou outra, de frases
como:
"O objeto sobre o qual Kafka
escreve é a massa da potência,
ainda não dissociada, separada
em seus elementos. É o corpo
informe de Vrtra, que contém as
águas, antes que Indra o trespasse com o relâmpago."
De modo geral, o texto é sóbrio, erudito e monótono. Falta
a ele o deslumbramento de um
Canetti, no ensaio citado acima, ou a inventividade e graça
de um Nabokov, que tratou de
Kafka em suas "Lectures on Literature": isso para mencionar
dois dos poucos outros autores
a quem Calasso recorre com
"admiração" no estudo (Musil
também aparece na lista).
A críticos, quase não há referências, destacando-se uma,
bastante irônica, a Benjamin e
Adorno. O livro, contudo, tem
seus méritos. Entre eles, talvez
o principal seja provocar uma
imensa vontade de reler Kafka,
o que, no final das contas, não é
pouca coisa.
ADRIANO SCHWARTZ é professor na Escola de
Artes, Ciências e Humanidades da USP.
Texto Anterior: + Livros: 2x Kafka Índice
|