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O cangaceiro e o escritor na terra do faz de conta

De quando Graciliano capturou Virgulino usando o poder da mente

CASSIANO ELEK MACHADO

RESUMO Antologia que re�ne escritos de Graciliano Ramos sobre canga�o atribui-lhe entrevista fict�cia com Lampi�o. Publicado sem assinatura no seman�rio "Novidade" e in�dito em livro, o texto traz marcas que o associam ao autor de "Vidas Secas", colaborador do peri�dico, no qual pela primeira vez abandonou pseud�nimos.

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O sambinha n�o era t�o popular quanto "Tico-tico no Fub�" ou "Com que Roupa?", seus colegas no "hit parade" de 1931, mas traduzia uma verdadeira obsess�o nacional daqueles anos. A voz de Castro Barbosa apregoava com garbo nas r�dios: "Adeus, Am�lia/ vou decidir minha sorte./Eu vou pro Norte./Vou peg� o Lampi�o".

N�o havia quem n�o quisesse "peg�" Virgulino Ferreira da Silva, o Lampi�o, o bandoleiro mais famoso do Brasil. A muitos poderia faltar sede de vingan�a, mas a ningu�m cairiam mal duas ricas recompensas oferecidas por sua captura: tanto o governo da Bahia quanto uma empresa, a perfumaria Lopes (do sabonete Dorly e p� de arroz Lady), pagavam 50 contos de r�is, cada um, por sua cabe�a.

Embora o pesco�o do cangaceiro tenha chegado intacto ao final daquele ano, coube a uma pequena publica��o de Macei� cumprir, � sua moda, o des�gnio da can��o. Em sua edi��o de 16 de maio de 1931, um seman�rio chamado "Novidade" pegou Lampi�o.

� verdade que a revista alagoana talvez n�o tenha satisfeito o apetite dos leitores fi�is, que provavelmente haviam visto uma semana antes um an�ncio na p�gina 2: "No pr�ximo n�mero: uma entrevista de Lampi�o � Novidade'".

A conversa seria efetivamente publicada: perguntas e respostas ao "her�i legend�rio do sert�o nordestino". Mas o texto (reproduzido ao lado), esclarecia-se logo na abertura, era uma entrevista fict�cia: feita por "via telep�tica".

O bate-papo virtual poderia jazer s� na mem�ria de gera��es de tra�as alagoanas, n�o fosse a suspeita de uma dupla de pesquisadores de S�o Paulo. Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla sustentam, em livro a sair no fim do m�s, que a entrevista � cria��o de um dos maiores nomes da literatura brasileira: Graciliano Ramos (1892-1953).

O postulado constar� do volume "Canga�os" [Record, R$ 34, 224 p�gs.], compila��o de textos sobre o banditismo sertanejo publicados pelo autor alagoano entre 1931 e 1941, em ve�culos de seu estado natal ou do Rio de Janeiro, ent�o capital do pa�s. Organizado pela dupla de gracilian�logos paulistas, o livro � composto por 14 artigos de imprensa e por dois cap�tulos de "Vidas Secas".

A inclus�o no volume de fragmentos do romance mais celebrado do autor (lan�ado em 1938, est� atualmente em sua 124� edi��o) n�o � fortuita. Al�m de tratarem diretamente do canga�o, os cap�tulos d�o cor a um dos sustent�culos do livro de Lebensztayn e Mio Salla: o livre tr�nsito entre Graciliano o articulista e o ficcionista.

Emblema disso � uma frase empregada em "Cadeia", cap�tulo de "Vidas Secas", que pode ser lido como um conto (n�o � toa, o cronista Rubem Braga definiria o livro, anos depois, como "romance desmont�vel"). Nele, Fabiano, o protagonista, afirma: "Apanhar do governo n�o � desfeita".

No texto de apresenta��o e num alentado posf�cio sobre Graciliano e o canga�o, os dois organizadores do livro mostram que o escritor j� havia usado a frase, igual, em tr�s cr�nicas sobre o tema, duas delas publicadas antes que o pr�prio Ramos sofresse vicissitudes nas m�os do governo --no fim do dia 3 de mar�o de 1936 ele seria encarcerado, em meio ao cerco aos comunistas do governo Vargas, e s� seria liberado em janeiro de 1937.

Mais do que incorrer no autopl�gio, com o uso repetido da frase, Graciliano sublinhava seu "leit- motiv": a resist�ncia �s injusti�as sociais. � num texto sobre Lampi�o, seu primeiro artigo dedicado em especial ao rei do canga�o, que o slogan aparece a primeira vez.

"Lampi�o nasceu h� muitos anos, em todos os Estados do Nordeste", come�a Ramos, que descreve o bandoleiro como "zarolho, corcunda, chamboqueiro, d� impress�o m�". Ele relata as mazelas da juventude de Virgulino Ferreira. "As injusti�as e os maus-tratos foram grandes, mas n�o desencaminharam Lampi�o. Ele � resignado, sabe que a vontade do coronel tem for�a de lei e pensa que apanhar do governo n�o � desfeita", emenda o escritor, em texto para a mesma "Novidade" que publicaria a entrevista falsa com o cangaceiro.

FINA FLOR A "Novidade" era o m�ximo. Feita nos fundos de uma livraria de Macei�, idealizada por dois jovens intelectuais da cidade, Valdemar Cavalcanti (1912-82) e Alberto Passos Guimar�es (1908-93), a revista durou s� seis meses, mas reuniu a fina flor intelectual da regi�o. O romancista Jos� Lins do Rego, o poeta Jorge de Lima, o futuro dicionarista Aur�lio Buarque de Holanda e o antrop�logo Manuel Diegues Jr. (pai do cineasta Cac� Diegues) foram alguns colaboradores regulares --de outras pra�as, viriam colabora��es de figuras como o poeta Murilo Mendes.

Mas o grande feito, pouco sublinhado a respeito dessa publica��o quase esquecida, foi o de ter sido, em mais de um sentido, o ve�culo de estreia de Graciliano Ramos.

Reeditada em 2012, a biografia mais conhecida do autor, "O Velho Gra�a", de D�nis de Moraes [Boitempo, R$ 52, 360 p�gs.], aponta que, aos 11 anos, o alagoano j� publicara seu primeiro texto, o conto "O Pequeno Pedinte".

Mas, ao longo de d�cadas, a contar desta obra de engajamento mirim, publicada em "O Dil�nculo - �rg�o do Internato Alagoano" em 1904, as dezenas de textos de sua lavra sa�ram sob pseud�nimos. Eram assinadas por X, L�cio Guedes, J. Calisto, Anast�cio Anacleto ou Ramos de Oliveira.

Como aponta Thiago Mio Salla, em outro volume recente organizado por ele, que compila s� textos do alagoano in�ditos em livro, "Garranchos" [Record, R$ 52, 378 p�gs.], foi apenas a partir de 1931, em sua contribui��o para "Novidade", que o autor passou a assinar como Graciliano Ramos.

Ele tinha 38 anos, j� havia sido prefeito de Palmeira dos �ndios, ainda n�o havia publicado nenhuma obra de fic��o. "Caet�s", seu primeiro romance, sairia s� em 1933. Mas um dos cap�tulos desse livro, o de n�mero 24, foi publicado em "Novidade" em junho de 1931, marcando oficialmente o come�o do prosador.

Ieda Lebensztayn, 38, desbravou por quase sete anos a hist�ria da revista alagoana, tema de seu doutorado na USP. Como aponta em "Graciliano Ramos e a revista Novidade': contra o lugar-comum", artigo publicado em "Estudos Avan�ados" (USP, n� 67, 2009), "se a Novidade' se deseja como rea��o cr�tica ao lugar-comum da viol�ncia, aos estere�tipos, � ret�rica dos bachar�is e pol�ticos e exp�e como problema o papel do intelectual num mundo de barb�rie, os textos de Graciliano nela publicados, anunciando a obra posterior, s�o sua melhor express�o".

No exame da �ntegra das 24 edi��es de "Novidade", conte�do rec�m-incorporado � Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional (hemerotecadigital.bn.br), nota-se que s� tr�s entrevistas foram publicadas pelo seman�rio. A quarta conversa editada pelo ve�culo, aquela com Lampi�o, foi a �nica entrevista fict�cia, g�nero no qual se sobressairia depois o dramaturgo Nelson Rodrigues.

BATE-PAPO Fora da fic��o, n�o era moleza entrevistar Lampi�o. Autoridade reconhecida no tema do canga�o desde os anos 1980, o historiador recifense Frederico Pernambucano de Mello, 66, conta apenas duas entrevistas confirmadas com o cangaceiro-mor.

A mais conhecida � uma dada em Juazeiro do Norte ao m�dico e jornalista Otac�lio Macedo (jornal "O Cear�", Fortaleza), feita em 1926, ano em que Lampi�o passou a ser conhecido em todo o Brasil.

A outra, sustenta ele, foi dada a Dem�stenes Martins de Andrade e teria sa�do originalmente em "O Serrinhense", de Serrinha (Bahia), e depois no "Di�rio de Not�cias", de Salvador. "Nela, Lampi�o chega a elogiar as pastilhas Valda."

H� ainda um depoimento, dado a Benjamin Abrah�o. C�lebre por ter fotografado e filmado Lampi�o, o s�rio-liban�s radicado no Brasil foi tema do longa "Baile Perfumado", dos cineaastas L�rio Ferreira e Paulo Caldas (1996), e de livro de Pernambucano de Mello, "Benjamin Abrah�o: Entre Anjos e Cangaceiros" [Escrituras, R$ 45, 352 p�gs.].

Graciliano, o "entrevistador" de Lampi�o, tamb�m n�o era dos mais entrevist�veis. Lebensztayn e Mio Salla est�o concluindo uma pesquisa sobre os bate-papos feitos com o escritor alagoano. Eles ser�o publicados em livro, no segundo semestre, tamb�m pela Record, editora que concentra a obra do escritor desde o in�cio dos anos 1970. Com nome provis�rio de "Falas", o volume ter� estimadas 22 entrevistas e deve sair � �poca de uma mostra audiovisual sobre o escritor prevista para o Museu da Imagem e do Som, de S�o Paulo.

Mio Salla, 34 (e desde os 19 estudando a obra do escritor), diz que n�o h� registros de outras entrevistas ficcionais de Graciliano, como a de Lampi�o que atribuem a ele.

No entanto, o professor da Escola de Comunica��es e Artes da USP diz que desde a primeira vez que bateu os olhos em "Lampi�o entrevistado por Novidade'", na Biblioteca Nacional, no Rio, em 2005, n�o teve d�vidas de que o texto era de Graciliano.

"S�o in�meros elementos que indicam sua autoria. Desde uma ironia muito peculiar, uma pilh�ria presente em textos publicados por ele em jornais, at� o deboche do chamado lampionismo liter�rio'", afirma.

Com linha semelhante de argumenta��o, um dos principais gracian�logos do Brasil, o professor Wander Melo Miranda, da Universidade Federal de Minas Gerais, concorda com a atribui��o.

"Sua vis�o l�cida e bem-humorada --no caso da entrevista imagin�ria, da qual podem ter participado tamb�m Lins do Rego e Jorge de Lima-- � uma novidade' para a �poca e at� hoje. Sem estere�tipos, sem a vis�o artificial de literatos e da gente do asfalto' sobre o assunto, Graciliano trata o am�vel fac�nora' como um astro pop avant la lettre', percebendo muito bem o que o mito popular revela e esconde: uma sociedade injusta, economicamente atrasada, submetida a desmandos de toda ordem e � apari��o de her�is ou bandidos salvadores", afirma, em depoimento � Folha.

SURPRESA Em janeiro de 1938, Graciliano Ramos escreveu, em cr�nica tamb�m recolhida em "Canga�os": "A pol�cia do Nordeste continuar� a perseguir o bandido, provavelmente o agarrar� de surpresa e mostrar� nos jornais a cabe�a dele separada do corpo".

Seis meses depois, "pegaram" Lampi�o. Ele, sua mulher, a Maria Bonita, e outros nove cangaceiros do bando foram mortos e degolados --as 11 cabe�as foram expostas na escadaria da prefeitura de Piranhas, em Alagoas.

No artigo "Cabe�as", publicado dois meses depois, e tamb�m inclu�do em "Canga�os", Graciliano Ramos sentenciou:

"Cortar cabe�as nem sempre � barbaridade. Cort�-las no interior da �frica, e sem discurso, � barbaridade, naturalmente; mas na Europa, a machado e com discurso, n�o � barbaridade. O discurso nos aproxima da Alemanha. Claro que ainda precisamos andar um pouco para chegar l�, mas vamos progredindo, n�o somos b�rbaros, gra�as a Deus".


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