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Antropologia Viagens de L�vi-Strauss As paix�es e as obje��es de um antrop�logo MARCELO COELHORESUMO Da admira��o pela cultura japonesa � interpreta��o dos mitos amer�ndios, dois lan�amentos do pai do estruturalismo, um na Fran�a e outro no Brasil, ajudam a entender Claude L�vi-Strauss -assim como uma �tima biografia, dessas que o estudioso detestaria ver escritas sobre ele. Quando tirava boas notas na escola (o que era bastante frequente), o pequeno Claude L�vi-Strauss ganhava como pr�mio uma gravura japonesa. Seu pai, pintor acad�mico na Paris das primeiras d�cadas do s�culo 20, compartilhava com os impressionistas da gera��o anterior o gosto pela arte oriental. Com o tempo, toda a cole��o de gravuras passou do pai ao filho. J� na adolesc�ncia, o futuro antrop�logo empregava suas economias comprando o que podia de estampas, livros e objetos do Jap�o. N�o era muito: a fam�lia L�vi-Strauss estava longe de ter conforto material, dependendo das escassas encomendas que o pai recebia para executar retratos fora de moda. Nascido em 1908, Claude L�vi-Strauss foi conhecer o Jap�o s� em 1977. Fez depois disso mais quatro viagens �quele pa�s, n�o apenas para proferir palestras, mas tamb�m para participar (coisa rara no seu caso, pelo menos desde sua famosa viagem ao Brasil nos anos 1930) de uma pesquisa de campo. Seu Laborat�rio de Antropologia Social, no Coll�ge de France, desenvolvia um estudo sobre a no��o de trabalho. Junto com pesquisadores japoneses, L�vi-Strauss encontrou todo tipo de artes�os tradicionais: produtores de saqu�, pintores de quimonos, pescadores, cozinheiros, em ilhas ainda relativamente alheias ao desenvolvimento dos grandes centros. "L'Autre Face de la Lune" [A outra face da Lua, Seuil, € 16,63, cerca de R$ 40] � um livro de bolso, com letras grandes e 189 p�ginas, em que se re�nem artigos, alguns dos quais in�ditos, de L�vi-Strauss sobre o Jap�o. Seu recente lan�amento na Fran�a coincide, aqui, com a publica��o de uma �tima biografia do antrop�logo, "Claude L�vi-Strauss: O Poeta no Laborat�rio", e com a tradu��o do quarto e �ltimo volume de suas "Mitol�gicas", "O Homem Nu". RIGOR N�o se espere de L�vi-Strauss o estilo de observa��o descompromissada sobre o cotidiano japon�s que faz a del�cia de "O Imp�rio dos Signos" (WMF Martins Fontes, 2007), de Roland Barthes (1915-80). Ao escrever esse livro de viagem, em 1966, Barthes j� tomava amplas liberdades perante as exig�ncias de formaliza��o da escola estruturalista, � qual pertencia na �poca e que tinha em L�vi-Strauss sua maior figura. S�o comparativamente poucos, em "A Outra Face da Lua", os coment�rios sobre o Jap�o contempor�neo. Em compensa��o, aparecem em cada p�gina os imensos conhecimentos de L�vi-Strauss a respeito da arte, da literatura e da mitologia do pa�s, que ele sempre cuida modestamente de negar. Admirador da cer�mica Jomon, cujas origens remontam a 10 mil anos, L�vi-Strauss elogia suas formas exuberantes, que o fazem pensar numa esp�cie de "art nouveau" de 5.000 ou 6.000 anos atr�s. Pergunta-se se algo do esp�rito Jomon (o gosto pela rapidez da execu��o, o processo de medita��o pr�vio � feitura da obra) n�o persiste na arte japonesa. H� tra�os estil�sticos recorrentes, continua L�vi-Strauss, nos dotaku da era Yayoi, nos haniwua de alguns s�culos depois, na arte do Yamato, ainda mais tarde, e no Ukiyo-�, mais recente. Opini�es como estas tornam especialmente lastim�vel a falta de ilustra��es nesse pequeno volume -que, no entanto, traz fotos de L�vi-Strauss e sua terceira mulher, Monique, ao lado de Junzo Kawada, seu cicerone no Jap�o. A est�tica do inacabado, a presen�a de um certo "primitivismo" na mat�ria bruta, na superf�cie encrespada das cer�micas, n�o s�o os �nicos tra�os da arte japonesa que atraem o autor. H� ainda o sentido da imperman�ncia, do decl�nio quase impercept�vel das coisas. "Os manuscritos que mofam, os monumentos que se degradam" interessam ao antrop�logo quando este l� as cr�nicas hist�ricas do Heike, nas quais s� v� paralelo com as "Mem�rias de Al�m-T�mulo", do rom�ntico franc�s Chateaubriand (1768-1848). Em terceiro lugar, L�vi-Strauss aprecia na cultura japonesa o "cartesianismo dos sentidos". A saber, uma "extrema aplica��o em recensear e distinguir todos os aspectos do real, [...] conferindo igual import�ncia a todos". Nos objetos do artesanato tradicional, assim, h� a pr�tica de tratar "com o mesmo cuidado a parte de dentro e a de fora, o avesso e o direito, as partes vis�veis e as que n�o se veem." Evid�ncia, para L�vi-Strauss, de uma disposi��o "moral e intelectual". Que se aplica, por exemplo, � culin�ria japonesa. Ao contr�rio do que ocorre na China e na Fran�a, n�o predomina a mistura dos ingredientes, mas sim a justaposi��o de sabores e texturas, que cabe combinar uma a uma. Segue-se, portanto, no mundo dos sabores, assim como na m�sica ou na pintura, o ensinamento de Descartes em seu "Discurso do M�todo": dividir cada dificuldade em tantas parcelas quantas forem necess�rias para melhor resolv�-la. INTRADUZ�VEL Um quarto aspecto dessa cultura interessa L�vi-Strauss: o fato de que, diferentemente do pensamento ocidental, ali � secund�rio o papel do sujeito, do "eu". Nesse ponto, o "cartesianismo" japon�s encontra limites. J� se disse, lembra L�vi-Strauss, que a f�rmula "penso, logo existo" �, a rigor, intraduz�vel em japon�s. A filosofia ocidental � "centr�fuga", tudo parte do sujeito. No Jap�o, o sujeito n�o � origem de nada, e sim resultado. A organiza��o social o situa no final de uma cadeia de determina��es (hier�rquicas, profissionais, familiares), em vez de partir dele rumo ao geral. A linguagem, prossegue L�vi-Strauss, evita o pronome pessoal, e mesmo atividades cotidianas se realizam no sentido inverso ao do Ocidente. Assim, para enfiar uma linha na agulha, o japon�s move a agulha, deixando a linha parada, enquanto o ocidental faz o contr�rio. Em seguida, prefere espetar o tecido na agulha, em vez de espetar a agulha no tecido. A particularidade foi notada, diz L�vi-Strauss, por viajantes ocidentais como o jesu�ta Lu�s Fr�is, no s�culo 16, e pelo ingl�s Basil Chamberlain, em 1890. N�o � dif�cil notar nessas caracter�sticas da cultura japonesa aspectos marcantes do estruturalismo. O gosto pela separa��o dos elementos e por suas combina��es, assim como a recusa ao papel determinante da consci�ncia e do sujeito, s�o tra�os fundamentais do m�todo criado por L�vi-Strauss a partir do estudo das culturas primitivas. E, sem d�vida, a sensa��o de um mundo em desaparecimento, de uma "imperman�ncia" de tudo � sua volta, ao lado de uma intensa prefer�ncia pelo imut�vel e pelo tradicional, constituem sentimentos t�o l�vi-straussianos quanto japoneses. Por isso mesmo, Patrick Wilcken enfrentou n�o poucas dificuldades na biografia "Claude L�vi-Strauss: O Poeta no Laborat�rio" [Objetiva, trad. Denise Bottmann 398 p�gs., R$ 35]. Apesar de um come�o de carreira aventuroso, que vai dos percal�os do jovem antrop�logo no cerrado brasileiro � sua complicada viagem aos Estados Unidos como refugiado judeu na Segunda Guerra, L�vi-Strauss foi principalmente um homem de gabinete. VIAGENS "Detesto as viagens e os exploradores", escreveu ele na abertura de "Tristes Tr�picos". Detestava muita coisa, ali�s. A pr�pria ideia de uma biografia a seu respeito n�o lhe inspirava simpatia, mas Wilcken narra sem ressentimento seus pr�prios encontros com o antrop�logo. "Quando lhe perguntei sobre o legado de sua obra, se outras pessoas estavam dando continuidade a suas ideias, se ele pensava que suas teorias iam sobreviver, fiquei desorientado com a rispidez da resposta", escreve o bi�grafo. "N�o sei e n�o me importo", disse L�vi-Strauss. A prop�sito de "Tristes Tr�picos", Wilcken perguntou a L�vi-Strauss por que n�o escreveu outros livros do g�nero, mais autobiogr�ficos e menos t�cnicos. A resposta: "Eu tinha um contrato para escrev�-lo, e precisava do dinheiro". � verdade que o di�logo se deu em 2005, quando L�vi-Strauss j� tinha 97 anos e, embora l�cido, estava cansado de receber pesquisadores para entrevistas. Mas a antipatia, ou o ensimesmamento, de L�vi-Strauss n�o esperou idade t�o avan�ada para se manifestar. Aos 66, em 1974, ele participou de um col�quio de v�rios dias na abadia de Royaumont, sobre as rela��es entre pensamento, cultura e linguagem. Estavam l� sumidades como Jean Piaget, Jacques Monod e Noam Chomsky. L�vi-Strauss passou o tempo rabiscando um papel, sem dizer nada. A certa altura, Chomsky criou coragem e o abordou. "Talvez o senhor se lembre de mim, quando assisti � sua aula em Harvard..." L�vi-Strauss encarou o c�lebre linguista. "N�o, n�o me lembro." Foram, diz Wilcken, suas �nicas palavras em todo o evento. Naturalmente, a biografia d� bom espa�o a encontros mais decisivos na forma��o de L�vi-Strauss. Ele se tornou amigo do surrealista Andr� Breton, seu companheiro na dram�tica travessia do Atl�ntico rumo a Nova York, fugindo da Fran�a ocupada pelos nazistas. O gosto pela arte ind�gena e, talvez, pela combina��o aparentemente disparatada de elementos, presente na mitologia de todos os povos, sem d�vida estabeleceu um terreno comum para as conversas entre o poeta e o antrop�logo. OBJE��ES Sobre os contatos com personalidades brasileiras, na d�cada de 1930, Wilcken -autor tamb�m de livro sobre a vinda da corte de d. Jo�o 6� ao Brasil- deixa em aberto especula��es improv�veis. L�vi-Strauss teria ficado indisposto com M�rio de Andrade por desconfiar de algum envolvimento emocional de sua primeira mulher, Dina, com o autor de "Amar, Verbo Intransitivo". Seja como for, o pai do estruturalismo tinha obje��es profundas a todo tipo de biografia. "O que importa � a obra, n�o o autor que por acaso veio a escrev�-la; eu diria antes que ela se escreveu atrav�s dele. O indiv�duo n�o passa de um meio de transmiss�o e sobrevive na obra apenas como res�duo". Sem incidir no excesso de documenta��o e detalhismo que d� volume gigantesco a tantas biografias escritas em ingl�s, Wilcken resolve esse problema da melhor forma, mostrando em p�ginas claras e precisas o conte�do das principais obras de L�vi-Strauss, sua recep��o cr�tica e a influ�ncia (imensa) que exerceu por certo tempo na vida intelectual francesa. O trabalho � admir�vel, ainda mais quando se tem em m�os "O Homem Nu" [Cosac Naify, trad. Beatriz Perrone-Mois�s, 752 p�gs., R$ 110], quarto volume do vasto panorama anal�tico de L�vi-Strauss sobre mitos amer�ndios. O foco desse livro s�o as narrativas dos �ndios do noroeste dos EUA, j� na fronteira com o Canad�. O sofisticado instrumental da an�lise l�vi-straussiana permite que as hist�rias mais impenetr�veis recebam interpreta��o convincente, � medida que s�o comparadas a outros mitos, de outras culturas, analisados nos volumes anteriores da s�rie. Apesar da paci�ncia exigida do leitor, � poss�vel perceber de que modo o m�todo estruturalista p�de representar, nas d�cadas de 1960 e 70, a esperan�a de uma exatid�o in�dita no campo das ci�ncias humanas. Operando por meio de oposi��es simples (natureza/cultura, terra/�gua, crian�a/adulto, pai severo/tio materno brincalh�o, Sol/Lua, cru/cozido, ave/peixe, c�pula/defeca��o, insulto/elogio etc.), o int�rprete de mitos abstrai detalhes circunstanciais (o tipo espec�fico de peixe, a exata configura��o geogr�fica, o teor preciso de determinada fala) de cada narrativa. Uma hist�ria dos bororos, no planalto central do Brasil, ressurge espelhada, invertida e modificada em todos os seus "conte�dos" de pormenor, num mito dos �ndios klamath, no noroeste dos EUA. Do mesmo modo, mais do que coincid�ncias aproximam, para o L�vi-Strauss de "A Outra Face da Lua", uma lenda contada por Her�doto de um mito japon�s tradicional. CONTRASTES Revelam-se, assim, constantes do esp�rito humano, menos nos "sentidos" mais profundos que orientam sua experi�ncia concreta, e mais nos mecanismos l�gicos pelos quais alguma fun��o, qualquer que seja, pode ser atribu�da aos elementos casuais com que topam pela frente. O esquema interpretativo do estruturalismo era t�o sedutor quanto "aplic�vel", em tese, a outras �reas do conhecimento. Um filme de Hitchcock ou um romance de Balzac prestam-se igualmente a esse tipo de decodifica��o em pares de opostos, e foi isso o que fizeram, a seu modo, Raymond Bellour e Jim Kitses na an�lise cinematogr�fica, e Barthes nos seus livros sobre Balzac e Racine. � bastante esclarecedor no livro de Wilcken o relato de como os antrop�logos ingleses reagiram ao estruturalismo de L�vi-Strauss. N�o apenas denunciaram incorre��es do ponto de vista emp�rico, mas se mantiveram refrat�rios a uma pesquisa que tendia tanto � abstra��o filos�fica e � matematiza��o de rela��es concretas. O curioso � que, desde a pesquisa de campo, a abordagem de L�vi-Strauss se caracterizava pelo generalismo. Em vez de estudar uma cultura em profundidade, como fizeram Malinovski e Evans-Pritchard, a expedi��o de L�vi-Strauss se dedicou no Brasil, fundamentalmente, a coletar material etnogr�fico em v�rias tribos bem ao estilo, diz Wilcken, dos exploradores colonialistas do s�culo 19. O vi�s comparativo da teoria estrutural, pode-se dizer, estava predeterminado desde a primeira viagem. O pr�prio modo como determinado mito pode ser interpretado por L�vi-Strauss se torna dependente desse tipo de abordagem. "Interpretar", aqui, equivale a "traduzir": um mito novo e desconhecido ser� menos estranho quando percebermos que repete, com novo vocabul�rio e outra sintaxe, uma narrativa equivalente, de outra cultura j� analisada. Nada mais alheio a essa empreitada intelectual do que a tentativa de "explicar" um fen�meno social investigando suas causas hist�ricas, ou as rela��es de ruptura ou refor�o que mantenha com outras institui��es da mesma sociedade. Natural que, escolhendo como foco das investiga��es um fen�meno sem autor determinado -mitos, rela��es de parentesco e a linguagem n�o foram "criados" por nenhum indiv�duo- e sociedades em geral sem registros do pr�prio passado hist�rico, o estruturalismo de L�vi-Strauss determinou, na Fran�a dos anos 1960, a voga (logo posta em pr�tica por Foucault e Barthes) da "morte do autor", da "morte do homem", da "morte do sujeito", da "morte de Marx" e do fim do primado da investiga��o hist�rica nas ci�ncias humanas. MAU HUMOR L�vi-Strauss recusaria, com mau humor, o entusiasmo que gerou em tantos seguidores. Por duas d�cadas, mais ou menos, sucedeu a Jean-Paul Sartre no papel de principal intelectual franc�s. Essa sucess�o, vista agora, n�o deixa de ter sua ironia. Privilegiando acima de tudo a liberdade do indiv�duo, numa situa��o hist�rica concreta, a filosofia de Sartre ganhou destaque quando a Fran�a, engolindo sua derrota diante do invasor alem�o, tentava a todo custo recuperar o papel de pot�ncia dona do pr�prio nariz. A ilus�o de autonomia se desfez, em boa parte, com a cis�o do mundo entre Estados Unidos e Uni�o Sovi�tica. Outro "choque narc�sico", por assim dizer, viria em seguida para a Fran�a. Perdendo suas col�nias na �frica e na �sia, a p�tria do estruturalismo se confrontava com um "outro" que j� n�o podia dominar e n�o queria compreender. Dessa �tica, talvez simplista demais, a obra de L�vi-Strauss pode ser entendida como sintoma e rea��o ao mesmo tempo. O "sujeito" desaparece em favor de estruturas an�nimas e inconscientes, que falam em seu lugar. Ao mesmo tempo, trata-se de abrir o horizonte do conhecimento a vis�es e formas de pensar que o antigo colonialismo desprezava como irracionais. � t�pica da cultura filos�fica francesa, por outro lado, uma confian�a indel�vel no racionalismo, ao lado de certa tend�ncia ao melodram�tico e ao radical. N�o por acaso, das austeras inquiri��es sobre sistemas de parentesco e mitologia amer�ndia resultaram conclus�es extremadas sobre o fim do sujeito, a morte do autor, a inutilidade da hist�ria e das biografias. Com a bem-feita biografia desse grande autor que foi L�vi-Strauss, Patrick Wilcken nos ajuda a relativizar tanto sensacionalismo filos�fico. Ele mostra, ademais, de que modo o antrop�logo sobreviveu ao crescente desprest�gio do estruturalismo, iniciado nas barricadas de maio de 1968. Mas isso j� � outra hist�ria. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros |
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