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Cinema/estréias - Crítica/"Não Estou Lá"
Haynes usa Dylan para renovar gênero
Ao chamar seis atores para interpretar diferentes fases de Bob Dylan, cineasta radicaliza o terreno das cinebiografias
PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA
Nesses tempos em que
tantos filmes buscam
legitimidade evocando
a expressão "baseado em fatos
reais", Todd Haynes ousa seguir o caminho oposto.
Logo no início da projeção de
"Não Estou Lá", uma cartela
avisa que o filme é "inspirado
nas canções e muitas vidas de
Bob Dylan". De partida, sabemos que a primeira fonte de
inspiração do diretor não foi
Bob Dylan, "o homem", mas
sua poesia.
Subentende-se, também, que
a própria vida é uma ficção sujeita a mutações e reinvenções,
difícil de ser representada pelos paradigmas da dramaturgia
tradicional.
Antes de ser uma biografia cinematográfica de Bob Dylan,
portanto, "Não Estou Lá" é a
tentativa de encontrar uma forma capaz de expressar, em filme, uma vida em fluxo.
Proposta assumidamente experimental mas, também, pop,
procurando conciliar pesquisa
de linguagem e comunicação
com o público -bem no espírito da própria obra de Dylan e,
sobretudo, um desenvolvimento natural da própria obra de
Todd Haynes, que já ensaiou
abordagens semelhantes em
"Superstar: The Karen Carpenter Story" e "Velvet Goldmine".
Transformações
Em "Não Estou Lá", personagens de nomes diferentes (nenhum chamado Bob), vividos
por seis atores, representam fases da carreira e diferentes aspectos da personalidade de Bob
Dylan.
Eles entram e saem de cena
(eventualmente cruzando caminhos) sem uma lógica evidente. No conjunto, porém,
traduzem um espírito em eterno estado de transformação,
mas que soube manter certa
coerência.
Os personagens imaginados
por Haynes, evidentemente,
não são figuras aleatórias. O
menino negro que percorre a
América de trem (Marcus Carl
Franklin) chama-se Woody
Guthrie, lendário cantor folk e
maior influência da primeira
fase de Dylan. Ben Whishaw é
Arthur Rimbaud, outra grande
influência do cantor e compositor, que, aliás, adotou o nome
Dylan em homenagem ao poeta
irlandês Dylan Thomas.
Richard Gere, no segmento
mais irregular, é Billy the Kid
-referência à participação de
Dylan no faroeste de Sam Peckinpah, "Pat Garret & Billy the
Kid". Christian Bale, Heath
Ledger e Cate Blanchett (em
caracterização que lhe valeu o
prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza e a indicação ao
Oscar na categoria coadjuvante) completam o retrato em forma de caleidoscópio.
Haynes foi bastante criticado
por ter dado mais importância
ao mito do que aos fatos. Um
detalhe importante omitido do
filme seria a importância crucial do empresário, Jeff Rosen,
nas muitas "reinvenções" da
carreira do cantor.
Essa crítica, sutilmente, sugere que "as muitas vidas" de
Bob Dylan seriam meras fabricações de marketing e que Haynes, inocentemente, teria comprado essa versão. Ok, pode até
ser -mas será mesmo que o autor de letras da dimensão de
Dylan seria apenas um artista
"fake", produção de um empresário esperto?
"Não Estou Lá", com a proposta que tem, não poderia ser
um filme regular -mas também não é ingênuo nem pretende ser uma desconstrução
do mito Dylan. Ao contrário,
trabalha dentro do mito, a favor
dele. Se o resultado é polêmico,
é difícil deixar de reconhecer as
boas soluções que Haynes encontrou no roteiro, na encenação, na montagem e na direção de atores para propor
uma renovação radical daquele que talvez seja o gênero
mais engessado entre as produções recentes do cinema
americano -a cinebiografia.
NÃO ESTOU LÁ
Produção: EUA/Alemanha, 2007
Direção: Todd Haynes
Com: Cate Blanchett, Heath Ledger, Richard Gere, Christian Bale
Onde: estréia hoje nos cines Espaço Unibanco, HSBC Belas Artes e Market Place Playarte
Avaliação: bom
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